Múltiplas Vozes 01/10/2025

Regular é proteger: normas claras fortalecem a atuação policial

A regulação adequada do uso da força funciona como um escudo triplo de proteção: protege o cidadão de possíveis abusos, o policial de acusações infundadas quando age corretamente e a instituição de crises de legitimidade

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Ariadne Natal

Pesquisadora Sênior do Núcleo de Estudos da Violência da USP e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Bruna Gisi

Professora da Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e Vice-Coordenadora do Núcleo de Estudos da USP

Imagine um cirurgião operando sem protocolos médicos, ou um piloto voando sem manual de voo. Parece uma cena absurda, não é? No entanto, é assim que grande parte dos policiais brasileiros trabalha hoje: sem normas claras sobre quando e como usar a força. E isso não os torna mais livres, pelo contrário – ficam eles próprios e a sociedade mais vulneráveis.

Um diagnóstico nacional preocupante

O estudo nacional inédito “Regulação do uso da força policial no Brasil: efeitos da Portaria Interministerial n°4.226/2010“, desenvolvido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), defende uma tese central: a regulação é, antes de tudo, um ato de proteção.

Por meio de um amplo levantamento documental e de pesquisa de campo em oito estados de diferentes regiões do país, o estudo traçou o mais completo panorama já realizado sobre como o uso da força é regulado, instruído, aplicado e controlado no cotidiano das polícias civis e militares brasileiras.

Os dados revelam um cenário preocupante: das 54 polícias analisadas no país, apenas oito possuem atos normativos próprios ou estaduais que regulam adequadamente o uso da força policial. Muitas ainda se apoiam em documentos genéricos como o Código Penal e a Constituição Federal (textos que, embora fundamentais, não oferecem orientações práticas para o cotidiano operacional das ruas) e a maior parte se apoia em Procedimentos Operacionais Padrão que são muito importantes, mas não têm força normativa. O resultado é previsível: policiais trabalhando em um limbo jurídico que gera insegurança para todos os envolvidos.

Essa fragilidade normativa se traduz em dados eloquentes sobre aspectos básicos da atividade policial. Das 54 instituições analisadas, menos da metade possui orientações detalhadas sobre uso de arma de fogo em abordagens, apenas sete exigem que o policial se identifique antes de uma abordagem, três preveem informar cidadãos sobre seus direitos, 12 restringem o uso de algemas, dez indicam em que circunstâncias é permitido sacar a arma de fogo e apenas 13 vetam apontar arma de fogo para pessoa desarmada.

Regulação como escudo profissional

Os relatos coletados em 29 grupos focais realizados com policiais civis e militares de todo o país revelaram um padrão: os agentes expressam medo recorrente não apenas de serem vitimizados em serviço, mas também de enfrentarem processos disciplinares e penais por decisões tomadas em frações de segundo.

Essa incerteza constante sobre como suas ações serão avaliadas por corregedorias, Ministério Público e Judiciário gera um estado permanente de hesitação e estresse que, paradoxalmente, pode contribuir para desfechos trágicos. Quando as regras são vagas, contraditórias ou inexistentes, cada ação policial se transforma em uma aposta: “Será que agi corretamente? Serei processado por fazer meu trabalho?”

A experiência de outras profissões técnicas demonstra que normas claras não limitam bons profissionais – elas os empoderam. Um médico que segue protocolos estabelecidos tem respaldo legal e científico para suas decisões. Um engenheiro que aplica normas técnicas está protegido juridicamente. Um piloto que segue procedimentos padronizados tem respaldo da aviação civil. Por que seria diferente com policiais que cotidianamente tomam decisões de vida ou morte?

A regulação adequada do uso da força funciona como um escudo triplo de proteção: protege o cidadão de possíveis abusos, protege o policial de acusações infundadas quando age corretamente e protege a instituição de crises de legitimidade. Quando um policial sabe exatamente o que pode e deve fazer, quando tem certeza de que será respaldado institucionalmente se agir de acordo com os protocolos, ele atua com mais segurança, eficácia e confiança.

Como resultado do diagnóstico, o estudo deu origem ainda a um Policy Paper que sistematiza 11 recomendações concretas para aprimorar a regulação do uso da força no Brasil. Entre as propostas estão: incentivar a criação de normas estaduais próprias e detalhadas, garantir formação continuada sobre uso diferenciado da força, estabelecer sistemas de monitoramento das ocorrências e valorizar as boas práticas já existentes em algumas corporações do país.

O recado é claro: não se trata de “engessar” a polícia com burocracias desnecessárias, mas de oferecer ferramentas concretas para que ela atue com mais eficácia, legitimidade e respaldo jurídico. É o caminho para a profissionalização plena da atividade policial no Brasil. Quanto mais claros forem os parâmetros de atuação, mais seguro estará o cidadão que precisa dos serviços policiais. E mais protegido estará o policial que cumpre sua missão de acordo com a lei e os princípios democráticos. Regular é proteger. E uma polícia protegida por normas claras e respaldo institucional é uma garantia de segurança mais eficaz para toda a sociedade.

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