Reforma ou refundação: o debate sobre o futuro da polícia no Chile após as manifestações de outubro de 2019
Gabriel Boric, presidente eleito do Chile, propôs, como medida para evitar novas violações, a “refundação de Carabineros”, reforçando na nova polícia a subordinação ao poder civil, a regulação do uso da força e uma formação transversal em direitos humanos
Paula Ballesteros
Chefe da Unidade de Estudos e Memória do Instituto Nacional de Direitos Humanos do Chile
Em outubro de 2019 ocorreu no Chile uma sequência de manifestações que ficaram conhecidas como “Estallido Social”. O que começou com estudantes de ensino médio pulando as catracas do metrô em razão do aumento do valor da passagem terminou com o “Acordo pela Paz e pela Nova Constituição”, assinado em 15 de novembro do mesmo ano por representantes de partidos dos mais diversos matizes. Durante os meses que antecederam o acordo político por uma nova Constituição, também houve por parte dos manifestantes episódios de destruição do patrimônio público, saques e incêndios de recintos privados; e, por parte das polícias chilenas, um sem número de prisões, de pessoas feridas, de acusações por violência sexual, de uso indiscriminado de gás lacrimogêneo e balas de escopeta que resultaram na perda ou afetação da visão de quase 500 pessoas – situação inédita no mundo.
A Pesquisa Nacional sobre Direitos Humanos 2021 do Instituto Nacional de Direitos Humanos mostrou que 87% da população achava que durante o “Estallido” houve uso desproporcional da força por parte das Forças Armadas ou Carabineros (assemelhada à Polícia Militar do Brasil) e 86% acreditavam que naquele período ocorreram violações aos diretos humanos, sendo que 58% deste ultimo grupo responsabilizavam o Estado e 52%, Carabineros do Chile.
A polícia ostensiva do Chile nunca esteve isenta de críticas. Principalmente após a retomada democrática que sucedeu a ditadura de Augusto Pinochet e contou com envolvimento direto de Carabineros nos crimes de lesa-humanidade ocorridos no período, a instituição passou por mudanças – algumas pontuais, outras mais estruturais – que tentaram modificar seu foco de atuação a uma política de segurança pública (e não mais de segurança nacional) e melhorar sua imagem frente à população. Vale ressaltar, entretanto, que, mesmo com todos os questionamentos recebidos, assim como ocorre em outros países da América Latina, a polícia no Chile figurava entre as instituições mais bem avaliadas pela cidadania, o que mudou depois de 2019.
Com aprovação de 36% da população – patamar que em momento anterior havia chegado a 70% – e tendo a confiança de 26% (Cadem-Plaza Pública, 2020), o destino da polícia chilena entrou em discussão na Comissão Provisória de Direitos Humanos da Convenção Constitucional logo em sua instalação, na qual se aprovou a proposta de uma nova instituição policial, que seja comandada por civis e que tenha como principal objetivo a defesa dos direitos humanos. A proposta ainda precisa passar pelo pleno da Convenção para integrar a Constituição.
Também nos debates para eleger o Presidente que assumirá em março de 2022, a configuração e o papel das forças policiais estiveram em tela. No segundo turno, o candidato de extrema direita, Antonio Kast, propunha em seu plano de governo a “reorganização e modernização das polícias”, destacando, entre outras propostas, “promover investigação prioritária e a sanção com máximo rigor da lei sobre todo delinquente ou agitador que agrida física ou verbalmente a um Carabinero, Policial, membro das FFAA, […]”. Já o candidato de centro-esquerda, e vencedor no pleito, Gabriel Boric, propunha, como medida para evitar novas violações, a “refundação de Carabineros”, reforçando na nova polícia a subordinação ao poder civil, a regulação do uso da força e uma formação transversal em direitos humanos.
De sua parte, o Poder Executivo ainda em exercício, por meio da Subsecretaria do Interior, lançou em junho de 2021 o projeto “Reforma de Carabineros 2027”, que propõe imprimir mudanças nos seguintes eixos: Controle da Ordem Pública; Institucionalidade e Governança; Modernização da Gestão; Carreira e Formação. A reforma está sendo coordenada por uma Unidade Coordenadora, composta por representantes do governo, da sociedade civil, do setor empresarial, de acadêmicos e carabineros de alta patente (na ativa e em retiro); e tem como princípios: uma polícia centrada nas pessoas, com foco em direitos humanos e perspectiva de gênero, subordinada ao poder civil, com atuação baseada em evidências e em coordenação com o sistema de justiça penal, e submetida à transparência e prestação de contas.
Com novo governo e nova Constituição, 2022 será um ano decisivo para o futuro de Carabineros de Chile. Se a polícia será refundada ou reformada vai depender da conjuntura política, das decisões judiciais sobre os crimes cometidos por policiais e das pressões cada vez maiores de parte da sociedade. Resta esperar para ver se a força popular que fez nascer uma nova carta constitucional no país também será capaz de fazer surgir novas forças policiais.