Rede de Proteção sob a Lei Maria da Penha: o caso do Vale do Jequitinhonha
Não é possível que em 2023 ainda tenhamos tão pouco a oferecer às mulheres e meninas que residem nos municípios do interior do Brasil, e sigamos a negar-lhes o direito humano de existir e viver livres de violência
Juliana Lemes da Cruz
Doutoranda em Política Social (UFF), cabo na PMMG e Conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Patrícia Habkouk
Promotora de Justiça (MPMG), coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate à Violência Doméstica
A combinação entre equipamentos públicos e o diálogo intersetorial constitui condição primordial para a garantia da Proteção Integral prevista na Lei Maria da Penha, que completa 17 anos de vigência no mês de agosto deste ano. No entanto, o alcance desse objetivo depende do contexto em que é demandada, a despeito de ser uma lei bastante difundida e reconhecida como uma das melhores do mundo.
Assim, inequívoco considerar que a realidade estrutural na parcela majoritária dos municípios brasileiros (89,07%), que são de pequeno porte I – até 20 mil habitantes (70,35%) – e pequeno porte II – entre 20.001 e 50 mil habitantes (18,72%) –, o cumprimento das medidas previstas em lei para proteção das mulheres não será tarefa simples.
Esse dado ilustra o cenário do Vale do Jequitinhonha, aqui destacado em razão da experiência empírica das autoras junto ao amplo território que compõe o nordeste de Minas Gerais. Ressalta-se que mesmo nesse contexto tão particular, os contrastes sociais, econômicos, culturais e políticos são bastante característicos. O Vale, como é comumente abreviado por populares, subdivide-se em três: o Alto Jequitinhonha, que tem como referências os municípios de Diamantina e Capelinha – mais próximos da capital mineira; o Médio Jequi, referenciado pelos municípios de Araçuaí e Pedra Azul; e o Baixo Jequi, representado por Almenara, como polo regional. Esses últimos encontram-se mais próximos ao estado da Bahia do que da região central mineira. O território abarca quase um milhão de habitantes, e, segundo o Plano de Desenvolvimento para o Vale do Jequitinhonha, publicado pela Fundação João Pinheiro (2017), engloba 59 municípios – 25 do Alto e 34 do Médio e Baixo.
Nesse molde, de municípios deslocados dos centros nos quais se tomam as decisões sobre as políticas públicas que dizem respeito às mulheres, é que se cristaliza o silêncio, elemento determinante das subnotificações de violências precedentes dos feminicídios íntimos. Não apenas no Jequitinhonha, mas em qualquer região do país onde estão indisponíveis equipamento essenciais para a garantia das condições mínimas de proteção à mulher. Quais sejam: delegacias e juizados especializados, Centros de Referência, Casas Abrigo ou mesmo profissionais qualificados com perspectiva de gênero.
Diante dos múltiplos desafios à aplicabilidade da LMP, que estabeleceu eixos estruturantes voltados à prevenção, assistência, combate e empoderamento, também alcançou aspectos relativos ao acesso e garantia de direitos, foco da presente reflexão.
Destaca-se nesse contexto a interseção gênero-raça-classe, que escancara a urgência de se pensar estratégias conjuntas para frear episódios violentos, e, não raro, brutais, que têm ocorrido nos municípios do interior. São territórios onde a decisão de denunciar a violência não necessariamente significa sucesso no acionamento da polícia, porque simplesmente a ligação pode não ser completada. A deficiência das linhas de transmissão e conectividade reflete diretamente na agilidade dos atendimentos, o que pode significar a preservação ou a perda de vidas. Fator que se soma à falta de efetivo policial (militar, civil e penal) para responder às distintas demandas relacionadas à segurança pública e à criminalidade.
Como exemplo, uma mulher residente no Vale do Jequitinhonha terá, certamente, mais dificuldades do que uma mulher que reside no Sul de Minas, ainda que ambas somem vulnerabilidades da mesma natureza. Com seus vários elementos, paisagens diversas, com rica cultura, “ […] tem as ausências, tudo aquilo que no Vale não houve e não há. A longa lista das carências, ali onde a modernidade entendeu de fazer um desvio, embaralha o sentido das coisas, alimenta as incertezas. ”* Dentre as carências, aquela que se relaciona à proteção da Lei Maria da Penha, uma vez que a principal constatação é a de que os serviços especializados previstos na referida lei não são realidade por lá.
Em Minas há 4 (quatro) Juizados Especializados de Violência Doméstica localizados na capital mineira e Varas Especializadas em funcionamento nos municípios de Contagem, Montes Claros, Governador Valadares, Uberlândia e Juiz de Fora. Quanto às Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – DEAM/Polícia Civil, somavam até meados do último ano 69 (sessenta e nove) unidades. Segundo dados da Diretoria de Apoio Operacional da PMMG, as Patrulhas de Prevenção à Violência Doméstica – PPVD/Polícia Militar chegavam a 128 (cento e vinte e oito) localidades, tendo meta de ampliação para todos os municípios com população igual ou superior a 30 mil habitantes. Quanto às Comarcas, o Tribunal de Justiça mineiro indica a existência de 298 (duzentos e noventa e oito) unidades.
Na região do Jequitinhonha existem 12 (doze) comarcas e em nenhuma delas há órgãos especializados do Sistema de Justiça; existe apenas 1 (um) Centro de Referência de Atendimento à Mulher; 4 (quatro) DEAM/PCMG (que não funcionam em plantão à noite e aos finais de semana); e PPVD/PMMG, continuamente, apenas nos municípios polo – de referência. Nessa região, segundo dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública – SEJUSP, do ano de 2022, e avaliados no âmbito do Centro de Apoio Operacional – Violência Doméstica do Ministério Público de Minas Gerais – CAOVD/MPMG, uma mulher sofreu violência a cada duas horas; uma mulher foi morta, vítima de feminicídio, por mês; 3% dos registros de violência doméstica e familiar feitos no âmbito da segurança pública de Minas e 8% dos crimes de feminicídio ocorreram no Vale do Jequitinhonha.
Entre 2020 e 2022, houve redução de 9,1% dos registros de violência doméstica, mas aumento das mortes violentas de mulheres por feminicídio na proporção de 116,7%.
Se, por um lado, nessa região os registros de ocorrência relacionados à violência doméstica e familiar tiveram redução, por outro, houve aumento de mortes violentas de mulheres por questões de gênero. Esse cenário aponta indícios de subnotificação.
Via de regra, os serviços que atendem as mulheres, mesmo que não especializados, se situam nos municípios maiores. Isto é, delegacias, comando da PM (Batalhões, Companhias), Fórum, Defensoria Pública e Promotoria de Justiça não são facilmente acessíveis para todas as mulheres, uma vez que parcela considerável delas reside nos municípios com larga extensão territorial, mais distantes dos centros/polos urbanos e/ou na zona rural.
Em razão das especificidades que diferenciam o Vale do Jequitinhonha dos demais territórios, constitui medida ainda mais urgente a formulação de uma política pública com recorte de gênero exequível na realidade daquela região.
Vale lembrar que a recente Lei 14.550/2023, ao conferir à Lei Maria da Penha uma interpretação genuína, alargou o espectro de proteção, dispensando, inclusive, o registro policial da violência para se postular o deferimento de medidas protetivas. Mas, analisada a realidade cultural, social e o limitado acesso à assistência jurídica/judiciária para as mulheres e meninas do Vale, o caminho da segurança pública ainda é o mais próximo do acolhimento que se pretende assegurar.
Não é possível que em pleno 2023 ainda tenhamos tão pouco a oferecer às mulheres e meninas que residem nos municípios do interior do Brasil, o que inclui a amostra destacada do estado de Minas Gerais, e sigamos a negar-lhes o direito humano de existir e viver livres de violência. Em suma, a base das relações sociais, especialmente as reprodutoras de violências de gênero, repercutem relações de poder, e o sentido destas confere ao fenômeno da violência doméstica contra meninas e mulheres razão para formulação de estratégias aplicadas às distintas realidades, o que reafirma a ideia, tão necessária e infelizmente atual, da frase dita em 1792 por Mary Wollstonecraft;. “Eu não desejo que as mulheres tenham poder sobre os homens, mas sobre si mesmas”.
*Polo Jequitinhonha – UFMG.
https://www.ufmg.br/polojequitinhonha/o-vale/sobre-o-vale-do-jequitinhonha/