Racismo Estrutural e Segurança Pública: caminhos para a garantia do direito às vidas negras
Entre 2002 e 2021, 720.927 pessoas negras foram assassinadas no Brasil, uma média de 99 negros por dia. Mais do que nunca, é preciso elevar o antirracismo para além do mero discurso. Precisamos estabelecê-lo como baliza de um marco civilizatório pautado pela equidade
Dennis Pacheco
Mestrando em Ciências Humanas e Sociais na Universidade Federal do ABC e pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Juliana Brandão
Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
A noção de racismo estrutural retrata contraponto à ideia de que o racismo estaria contido apenas nas relações interpessoais, deslocando nosso olhar para seus efeitos sistêmicos, não-imediatos, macroscópicos, institucionais e temporalmente cumulativos, que independem e se sobrepõem à intencionalidade e às ações individuais e atravessam múltiplas esferas da vida social [1]. O racismo estrutura relações sociais, naturalizando a desigualdade. Entendê-lo dessa forma implica uma tomada de posição emancipatória e de reconstrução de nossas lógicas de operação da política, tanto no campo das relações privadas, como no das relações em sociedade.
Ainda que deficitária e dotada de seus próprios problemas (especialmente em relação à qualidade da informação produzida), a produção de dados é indispensável para termos uma noção do tamanho da desigualdade inerente à vulnerabilidade à violência letal no país. A sobrerrepresentação de negros entre as vítimas é intensa e se faz presente em quase todos os dados disponíveis, ilustrando e corroborando a hipótese defendida por Abdias do Nascimento [2], de que existem estruturas de vulnerabilização de vidas negras no Brasil, advindas desde a constituição do sistema escravagista, passando pelos arranjos institucionais da economia, da política, da cultura, da polícia, cujo resultado é a eliminação difusa desse segmento populacional.
Conforme dados do Datasus, entre 2002 e 2021, 720.927 pessoas negras foram assassinadas no Brasil. 99 negros por dia. Ao longo de 20 anos. Negros representam 71% de todas as vítimas de assassinato no Brasil no período. Somente em 2021, 36.922 pessoas negras foram mortas.
As novas gerações negras são também vítimas preferenciais das mortes violentas. Segundo dados do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, dentre as crianças de até 11 anos vítimas de homicídio, 67,1% eram negras. Entre os adolescentes de 12 a 17 vítimas de homicídio, 85,1% eram negros. A violência letal tem cor e endereço certos no Brasil e acomete de modo majoritário e extremamente desproporcional jovens negros pobres e periféricos.
Quando consideramos as mortes violentas intencionais (soma de homicídios, lesões corporais dolosas de resultado morte, latrocínio e mortes decorrentes de intervenções policiais) registradas pelo setor da segurança pública, os negros são ainda mais sobrerrepresentados. 76,9% das vítimas de mortes violentas intencionais em 2022 eram negras.
As polícias brasileiras, em especial as militares, estão entre as mais letais do mundo, e, para além disso, o produto de sua ação é profundamente marcado pela desigualdade racial. 83,1% das vítimas das mortes decorrentes de intervenção policial no país em 2022 eram negras.
Mas o modelo de polícia implementado no Brasil não mata negros somente fora das corporações. 67,3% dos policiais assassinados no país em 2022 eram negros. A maioria esmagadora (mais de 70%) das mortes acontece fora de serviço e os fatores vulnerabilizantes estão associados à sobreposição de baixa valorização profissional a condições extenuantes de trabalho. Policiais morrem fora de serviço porque se arriscam em trabalhos informais de alto risco para complementar renda, nos quais não têm apoio tático operacional da central e dos colegas, equipamento de proteção individual adequado (a que muitos não têm acesso sequer nas corporações). A segunda causa mais prevalente de mortes entre policiais é o suicídio (foram registradas 94 mortes por confronto ou lesão não natural de policiais fora de serviço e 82 suicídios de policiais da ativa em 2022). O adoecimento mental também está ligado às condições laborais, à falta de perspectiva, ao endividamento, ao adoecimento mental e à falta de apoio psicológico [3].
Em 2022, as polícias registraram que 56,8% das vítimas de estupro (incluindo estupro de vulnerável) eram pessoas negras. Em pesquisa de vitimização do mesmo ano [4], no que concerne ao local onde a violência ocorreu, a residência lidera como o espaço menos seguro, registrando 43% dos casos. Nesse ponto cabe a reflexão sobre as formas veladas de racismo e do quanto aceitar que o que se concebe como espaço doméstico protegido passa também por uma gama de privilégios invisíveis, porém determinantes para o assujeitamento dos corpos negros à violência. Ou seja: é preciso debater os impactos da racialização nas formas de existência e ocupação dos espaços privados, que também são estruturados e portanto, atravessados pelo racismo.
A negação e a invisibilização são as principais características do racismo à brasileira e se refletem de modo emblemático na ausência de dados sobre as categorias criminais criadas para coibi-lo. Isso é consequência da baixa capacidade das instituições policiais para a promoção do direito de igualdade de LGBTQIA+, negros, indígenas, mulheres, imigrantes e outras populações que deveriam ser protegidas pela Lei de Racismo. Frequentemente, essas populações encontram em policiais que deveriam protegê-las e apoiá-las após as violências sofridas, algozes revitimizadores com quem precisam negociar, em pé de desigualdade, a garantia dos próprios direitos.
Como resultado, há interposição de inúmeras barreiras ao registro de boletins de ocorrência de racismo e injúria, fazendo com que a lei seja pouco aplicada e a sensação de impunidade reduza a confiança de vítimas e vítimas em potencial nas instituições, aumentando a subnotificação e mantendo o crime de racismo como coisa das imaginações de negros, LGBTQIA+, imigrantes do Norte e do Nordeste, mulheres, indígenas, pessoas com deficiência e tantos outros grupos discriminados.
As marcas do racismo aparecem, ainda, na dinâmica da Justiça Criminal e do Sistema Prisional. Em 2022, a população carcerária do Brasil superou a marca de 832 mil pessoas. No recorte racial, a proporção de pessoas negras encarceradas alcançou 68,2% desse total. Estamos, portanto, frente a um sistema que pune e penaliza, prioritariamente, a população negra. Como já tratamos aqui, as abordagens policiais privilegiam o enquadramento de jovens negros periféricos como criminosos em potencial e são tomadas como peça-chave do modelo de policiamento e segurança pública no país. Ao não determinar critérios objetivos de distinção entre usuário e traficante, a Lei de Drogas reserva aos policiais na ponta o poder de construir a maior parte da clientela do sistema prisional a partir dos vieses racistas e preconceitos com que conduzem suas abordagens [5]. O avanço da suposta guerra às drogas sob a forma da Lei de Drogas construiu um cenário em que se promove, simultaneamente, o encarceramento em massa e a vulnerabilização de jovens negros presos por crimes não-violentos, e o espraiamento das facções de origem prisional, que instrumentalizam as condições absolutamente degradantes e letais de vida [6] nos presídios para recrutá-los.
Numa sociedade desigual em que a violência é perpassada tão intensamente pelo racismo e negros somos tão desproporcionalmente mais vulneráveis às violências, não é que políticas focalizadas tapariam buracos deixados pelas políticas universais, mas que qualquer política de segurança que se pretenda eficaz deve necessariamente ser focalizada se quiser alçar os direitos civis (à vida, à não-discriminação, à livre circulação e à livre associação) do estatuto de privilégio em que se encontram hoje, ao de direitos de fato, de que gozam todos os cidadãos. O processo de democratização não terá sido minimamente finalizado até que negros tenhamos direitos civis garantidos; por isso, a segurança pública deve ser entendida como direito fundamental e expandir o processo de focalização de políticas do setor a partir de uma concepção republicana de direitos e cidadania.
A efetivação dessa lógica republicana, cidadã e antirracista nas políticas de segurança pública demanda:
- Da produção de dados: granularidade, informações demográficas (idade, raça, cor, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, presença ou ausência de deficiências etc.), georreferenciamento, publicidade, frequência e acessibilidade;
- Do planejamento: ampliação das instâncias e dispositivos de representação e participação em processos decisórios, implementação de metas concretas, mensuráveis e auditáveis, fundamentação em evidências científicas;
- Da execução: ampliação das instâncias e dispositivos de controle civil, coordenação e atuação em rede;
- Do monitoramento e avaliação: periodicidade definida, e realização de estudos transversais, multissetoriais, inclusivos e interseccionais dos impactos das políticas, publicidade de seus resultados e ampliação das instâncias de deliberação em torno de melhorias incrementais.
É preciso elevar o antirracismo para além do mero discurso. Precisamos estabelecê-lo como baliza de um marco civilizatório pautado pela equidade.
*Este texto foi adaptado a partir da nota técnica e do infográfico publicados pelo FBSP no dia da Consciência Negra, 20 de novembro, no site do FBSP. Ambos podem ser acessados pelo link: https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/racismo-estrutural-e-seguranca-publica/