Jonas Pacheco
Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisador da Rede de Observatórios de Segurança-RJ/CESeC
A Rede de Observatórios da Segurança lançou na quinta-feira, 17 de novembro, mais um relatório “Pele Alvo”, publicação anual que tem como objetivo a compilação e análise dos dados oficiais obtidos via Lei de Acesso à Informação referentes às mortes por intervenção de agentes do Estado. O foco do relatório é a distribuição de cor ou raça das vítimas.
Dos sete estados monitorados pela Rede [1], o resultado analítico do relatório vai ao encontro de outras publicações que tratam do tema: há uma esmagadora sobrerrepresentação de vítimas negras entre os mortos pelas polícias. Esse diagnóstico escancara uma dualidade: sabemos há muito tempo que os negros são as principais vítimas da letalidade policial, mas mesmo assim impressiona a permanência desse quadro, principalmente pela inação política para tentar solucioná-lo. Também sabemos que em alguns estados esse número é extraordinariamente alto, como no Rio e na Bahia, mas a realidade não muda.
Rio de Janeiro, com 1.356 mortes, e Bahia, com 1.013, seguem se destacando pela alta letalidade produzida pelas forças de segurança. Já em São Paulo há um outro cenário: em 2020, as polícias paulistas vitimaram 770 pessoas; já em 2021 houve uma redução de aproximadamente 26%. Uma das variáveis que ajudam a explicar essa redução, ainda que de maneira preliminar, é a adoção do uso de câmeras corporais nas fardas dos policiais e outros dispositivos de responsabilização de comandantes. Todavia, ainda que se veja redução no número absoluto de mortes, independente do estado em que ela ocorra, a proporção de negros vitimados segue em patamares inaceitáveis.
Além do alto índice de violência perpetrada, outro ponto de destaque no relatório é o grau de transparência na obtenção e produção dos dados acerca das mortes cometidas por policiais. Pode-se citar alguns exemplos: o Ceará registrou mais uma vez um nível inadmissível de casos sem identificação racial, 70% das vítimas; o Maranhão simplesmente não produz dados de segurança pública com informação de raça ou cor; o desrespeito sistemático aos prazos da Lei de Acesso à Informação por parte do Piauí; o informe oficial por parte da Secretaria de Segurança da Bahia de que 122 vítimas não teriam sido cadastradas em seu sistema oficial.
Em todo caso, o racismo enquanto definidor central de nossa moralidade e estruturante de nossas relações atravessa as políticas públicas do Estado e se evidencia nos dados elencados acima, seja na elevadíssima proporção de negros mortos, seja na falta de produção de informações robustas sobre raça ou cor.
Fonte: Elaborado pela Rede de Observatórios da Segurança com base nas informações obtidas com as secretarias de segurança.
Frente a isso, o desafio de se pensar possibilidades de mudança e reversão desse quadro se impõem com a mesma complexidade que o problema apresentado. É preciso cobrar esforços para além das armadilhas analíticas que tomam o racismo na letalidade policial de modo monocausal. Tentativas de explicar um quadro dinâmico e complicado a partir de uma única variável, seja ela econômica, educacional, estrutural ou institucional não têm surtido os efeitos esperados.
Comumente, as ações defendidas como forma de reduzir esses índices visam políticas de longo prazo. De um lado, as que almejam de algum modo uma transformação mais profunda na dinâmica da violência e até mesmo socioeconômica do país e, de outro lado, a formulação de políticas que fortaleçam o funcionamento das instituições visando um controle mais efetivo das ações policiais com a adoção de protocolos de atuação não pautados em ações violentas. Ambas as perspectivas necessitam ser trabalhadas de forma concomitante e não podem ser desprezadas.
As propostas para mudança desse quadro podem se expressar em medidas de longo prazo que prezam por uma abordagem multidimensional e que consideram diferentes variáveis intervenientes no fenômeno. Por exemplo, os investimentos em educação, a diminuição das desigualdades socioeconômicas e a melhoria no acesso à saúde pública já mostraram seus efeitos na redução da vulnerabilização da população negra. Em termos institucionais, o que se tem observado nos estados que apresentam um resultado mais consistente na redução de mortes pela polícia dão conta principalmente da articulação dos órgãos do sistema de justiça criminal, com uma atuação menos hesitante do Ministério Público e dos Tribunais de Justiça, fazendo com que as ações policiais, constantemente defendidas sob o discurso da legítima defesa, tenham maior rigor de investigação e julgamento.
Seja pensando em ações de longo prazo ou articulações institucionais, o maior desafio que se coloca para a atenuação dessa questão é a vontade política de execução dessas medidas. Em muitos casos, como no Rio de Janeiro, se viu em alguma medida a redução dessas ações, mas foram descontinuadas por governos que endossam a violência policial.
Dito isto, todos os esforços que buscam denunciar e diminuir as ações violentas policiais devem ser defendidos sem exclusividade de perspectiva. Ações de longo prazo e articulações institucionais são fundamentais para reverter o quadro de vulnerabilização da população negra e a Rede de Observatórios enquanto entidade de pesquisa da sociedade civil reforça o seu papel como órgão produtor de estudos na área da segurança de maneira a contribuir para o debate público.
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[1] Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo