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Racialização e Cultura Policial

Há pouquíssimos estudos sobre o tema do racismo nas instituições de segurança pública. É necessário, oportuno e urgente discutir a questão em pleno século XXI

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Martim Cabeleira de Moraes Júnior

Tenente-coronel da Reserva da Brigada Militar do Rio Grande do Sul

Uma pessoa autodeclarada negra poderia mudar seu comportamento em relação à negritude, para se adaptar à cultura profissional dominante no ambiente de trabalho? Um policial negro sofre com questões raciais internamente nas instituições de segurança pública?

As breves palavras deste texto não são suficientes (e nem é o propósito) para demonstrar que as respostas para ambas as perguntas anteriores são “sim”. A ideia aqui é levantar argumentos para provocações iniciais de um debate necessário. Um dos poucos documentos jurídicos que trazem o conceito (entre outros) de racismo é a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação e Formas Correlatas de Intolerância. O Brasil é signatário da Convenção, que ao conceituar racismo, menciona:

Racismo consiste em qualquer teoria, doutrina, ideologia ou conjunto de ideias que enunciam um vínculo causal entre as características fenotípicas ou genotípicas de indivíduos ou grupos e seus traços intelectuais, culturais e de personalidade, inclusive o falso conceito de superioridade racial.

Neste sentido, é preciso atentar para as graves consequências das questões de racialização no serviço público, sobretudo as falsas noções racializantes instaladas entre os profissionais de segurança pública. A maior parte dos dicionários jurídicos não traz o verbete “racismo”. A própria lei dos Crimes de Preconceito (Lei 7.716) não menicona a palavra racismo. Racialização seria exatamente tomar como verdadeiras as noções de diferenças entre seres humanos pela pele ou pela origem étnica.

PROFISSIONAIS RACIALIZADOS

Já existe bibliografia sobre os problemas de saúde física e mental que afetam os profissionais da segurança pública, mas é incrível como a maior parte deles não especifica a vulnerabilidade por questões raciais (racismo velado).

O Guia de Ações do Projeto Qualidade de Vida, do Ministério da Justiça (2010), decorrente do Projeto Nacional de Qualidade de Vida dos Profissionais de Segurança Pública, silenciou sobre o tema especificamente. Ampla pesquisa realizada em 2009, que resultou na publicação intitulada: “O que pensam os profissionais de segurança pública no Brasil”, menciona que 5,3% consideram ter sofrido racismo em algum momento da carreira.

O Relatório da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública menciona a palavra racismo somente uma vez, e não relacionada aos âmbitos internos das instituições de segurança pública. O autor Nobre (2010) é que traz um panorama da Polícia Militar do Rio de Janeiro em relação ao Negro na Polícia Militar (O Negro na Polícia Militar). Araújo (2008) publicou um estudo sobre o que denominou “estigmas e preconceitos na corporação”, tratando da Polícia Militar do Distrito Federal.

São pouquíssimos os estudos das questões raciais nas instituições de segurança pública. Em 09 de fevereiro de 2021, o tenente-coronel Evanilson de Souza, da Polícia Militar de São Paulo, enfrentou problemas por tratar de questões raciais na abordagem policial (sobre o que há publicação no Fonte Segura).

Tudo isso mostra como é necessário, oportuno e urgente discutir o tema.  Conceitos como o racismo recreativo (MOREIRA, 2019), racismo estrutural (ALMEIDA, 2019), bem como racismo à brasileira (TELLES, 2003), podem servir de excelentes referenciais para ampla discussão com viés dialético-crítico.

O tema do racismo dentro das instituições policiais é, de certa forma, sistematicamente evitado, como se funcionasse (e funciona) uma estratégia de silenciamento (racismo velado). Assim, espera-se que sejam dadas visibilidades múltiplas aos problemas que estão no centro e na periferia das discussões sobre questões raciais nas instituições de segurança pública. Quem sabe se descubra muita coisa que algumas pessoas não querem ver descobertas?

Urgente a segunda Conferência de Segurança Pública, com grupos de trabalho que tratem especificamente da temática étnico-racial.

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.

ARAÚJO, Marcos de. Mobilidade social, multiculturalismo ou discriminação ma polícia militar: um estudo sobre estigmas e preconceito na corporaçã. Braíslia (DF): Fortium, 2008.

BRASIL. Lei 7716, de 05 Jan 1989. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7716compilado.htm. [Consultado em 20-11- 2021].

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, SENASP. Projeto qualidade de vida. Guia de ações. Valorizando o professional de segurança pública. Brasil. Ministério da Justiça. 2010.

MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Pólen, 2019.

NOBRE, Carlos. O negro na polícia militar. Rio de Janeiro: Multifoco, 2010.

SENASP. O que pensam os profissionais de segurança pública, no Brasil. Ministério da Justiça. 2009.

TELLES, Edward. Racismo à brasileira. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

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