Isabel Figueiredo
Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP e especialista em Gestão Pública pela ENAP. Foi secretária-adjunta de Segurança Pública do Distrito Federal e diretora na Secretaria Nacional de Segurança Pública. Foi assistente e assessora jurídica na Ouvidoria de Polícia de São Paulo entre 1998 e 2003. Conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Criada em 1995, em meio a um pacote de medidas do governo Mario Covas que visava qualificar a segurança pública do estado, a Ouvidoria de Polícia de São Paulo sempre serviu como referência quando o assunto é controle externo da polícia no Brasil.
O decreto que criou o órgão virou Lei em 1997, e nela consta o processo de escolha do Ouvidor, protagonizado pela sociedade civil. Em síntese, o Condepe, conselho estadual de direitos humanos, que é composto majoritariamente por representantes de ONGs e movimentos sociais, conduz o processo eleitoral que leva à formação de uma lista tríplice. A partir dela, o governador seleciona o Ouvidor, que terá um mandato de dois anos.
Esse sistema não foi instituído à toa: visa assegurar o lastro social da Ouvidoria, que é fortalecido, também, pela composição do seu conselho consultivo, geralmente formado por notáveis juristas e defensores de direitos humanos.
Esse lastro social é fundamental para que a Ouvidoria exerça suas atribuições e é um dos fatores que permitem que ela venha exercendo, de fato, o papel de controle externo social da atividade policial.
A Ouvidoria de São Paulo sempre teve uma atuação forte e qualificada, boa articulação política e muito reconhecimento externo, inclusive da imprensa. Com isso, produz conhecimento, tem ação propositiva e é fundamental na investigação de diversos casos de violência policial.
Claro que a relação com as polícias não é exatamente boa. Ao longo da história, existiram momentos em que todos os canais de comunicação com as polícias foram fechados e que os comandos articularam a queda do Ouvidor ou mesmo o fechamento do órgão. Inúmeros foram os projetos de lei, sempre de autoria de parlamentares policiais, que visavam reduzir sua autonomia ou alterar o processo de escolha do Ouvidor. Em determinado período, o principal embate foi com o próprio Secretário de Segurança Pública que, mesmo num governo de continuidade do PSDB, desconhecia o propósito fundamental do órgão, resumido na famosa frase de Covas, para quem a Ouvidoria ajudaria “a abrir os olhos do governo onde há cegueira”.
Nessa relação de altos e baixos, algumas situações tensas quase impossibilitaram a continuidade do trabalho do órgão e colocaram à prova a capacidade institucional do Condepe de manter sua função de ser o responsável pela escolha do Ouvidor.
Este início de fevereiro está sendo marcado pela notícia de que a Ouvidoria está sem Ouvidor. Uma série de imbróglios referentes ao processo eleitoral fez com que não houvesse a nomeação de um novo Ouvidor e com que o atual permaneça no cargo, ainda que seu mandato tenha acabado.
O que aconteceu?
Após um processo eleitoral que durou quatro meses, o Condepe publicou no Diário Oficial uma lista tríplice contendo os três candidatos mais votados para assumir o cargo de Ouvidor da Polícia do Estado. A lista foi publicada com erros e isso gerou uma série de questionamentos da eleição, fazendo com que o governador não nomeasse um novo Ouvidor.
A publicação contém um texto e uma tabela. No texto, o atual Ouvidor aparece com menos votos do que os demais candidatos e, assim, não comporia a lista tríplice. Na tabela, ele aparece com a mesma quantidade de votos que dois dos demais candidatos, de modo que deveria compor a lista. Existem também dissonâncias no que diz respeito à totalização de votos.
A partir desses erros, que segundo o Condepe poderiam ser corrigidos com a simples publicação de uma errata (o que foi solicitado à Secretaria de Justiça), dois parlamentares estaduais e o próprio Ouvidor recorreram dos resultados do processo eleitoral.
Como não houve a publicação da errata nem a apreciação dos recursos mencionados, passados três meses da eleição, o novo Ouvidor não foi nomeado.
A Ouvidoria de Polícia de São Paulo está sem Ouvidor?
Em que pese a previsão da Lei, de que o Ouvidor tenha mandato de dois anos (permitida uma recondução), existe um decreto de 2013 que diz que “na hipótese de descontinuidade entre o final do período de 2 (dois) anos de exercício pelo Ouvidor da Polícia e nova nomeação, responderá pelo expediente do órgão seu último titular(…)”. Do ponto de vista estritamente jurídico, então, é possível que o governador “prorrogue” o mandato do Ouvidor até que se resolva o processo eleitoral.
Trata-se de mais uma daquelas situações em que o que é legal não necessariamente é justo ou adequado, já que o decreto permite a prorrogação infinita do mandato. Ou seja, como quem prorroga o mandato é a mesma pessoa que nomeia o novo Ouvidor – o governador – basta não fazer a nomeação para que o Ouvidor “deposto” fique no cargo indefinidamente.
Isso é particularmente grave neste momento, já que o atual Ouvidor foi reiteradamente criticado pelos movimentos sociais por sua atuação – que seria muito mais alinhada com os interesses do governo do que os da população que sofre com má conduta policial.
É a primeira vez que isso acontece?
Quando a Ouvidoria foi criada, instituiu-se uma tradição de nomeação do primeiro colocado na lista tríplice para o cargo de Ouvidor. Essa tradição, porém, não se manteve e foi quebrada em 2003, 2017 e 2019. Na primeira vez em que isso ocorreu, o Ouvidor Fermino Fecchio não foi reconduzido, mesmo tendo ficado no topo da lista e, em seu lugar, foi nomeado o terceiro colocado, demitido em 2005, por dirigir supostamente alcoolizado e se envolver em um acidente que causou uma morte.
Esse talvez tenha sido um momento decisivo para o Condepe, que perdeu a oportunidade de gerir a crise, permitiu que a corda se esticasse e foi atropelado pelo governador. Alckmin não apenas demitiu o Ouvidor antes do fim do mandato, como não aceitou a nova lista tríplice elaborada pelo Conselho, o que fez com que houvesse um longo impasse que se resolveu com a inclusão de um quarto nome na lista, que foi nomeado e ficou no cargo até 2009.
Novo imbróglio se deu na sucessão do Ouvidor seguinte, que teve um primeiro mandato entre 2009 e 2011, após constar da lista oriunda da eleição do Condepe, e foi reconduzido ao cargo por livre nomeação do governador.
A tensão entre o governo do Estado/polícias e a Ouvidoria/Condepe, assim, não é novidade em São Paulo. Se por um lado não há interesse do governo no fortalecimento da Ouvidoria – que vem sendo sucateada a cada ano –há uma certa limitação no jogo político feito pelo Condepe, que por vezes coloca a si próprio em enrascadas. O conselho fez isso em 2005, ao deixar de tomar providências no caso do Ouvidor que causou o acidente, e fez novamente agora, cometendo um erro pueril que era só o que os críticos da Ouvidoria precisavam para atacá-la.
Não é demais registrar que um dos parlamentares que questionaram a lisura do processo eleitoral é o Coronel Telhada, ex-Comandante da Rota que respondeu a 29 processos por homicídios decorrentes de ação policial.
Independentemente das disputas políticas em campo, o que importa agora é recolocar as coisas em seus devidos lugares, seja realizando nova eleição ou esclarecendo o que houve com a que ocorreu, é preciso que a Ouvidoria seja conduzida por alguém com legitimidade social. Não é possível considerar razoável que o órgão siga ocupado por um Ouvidor biônico, ainda mais diante das fortes críticas que ele recebeu durante sua gestão.
Mario Covas, que foi capaz de criar um órgão com autonomia ímpar – o que não se viu sequer nos governos dos partidos de esquerda –, deve estar se revirando no túmulo com mais esse desgosto causado pelo tucanato paulista.