Quem garante os Direitos Humanos dos garantidores de direito na Segurança Pública?
Sou militar da reserva. Cheguei aos 30 anos de serviço destruído psicologicamente. A falta de regulamentação e o excesso de poder que os regulamentos colocam nas mãos dos comandantes submetem os militares a tratamento desumano
Gilvan Gomes da Silva
Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Nacional de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Nos últimos meses ocorrências policiais fatais colocaram em relevo as condições de trabalho dos agentes de segurança pública no Brasil. Os fatos ainda estão sendo elucidados, todavia as motivações alegadas estão presentes nas relações laborais da segurança pública sendo parte constituinte e constitutiva das interações entre os agentes de segurança e destes com os cidadãos. As diversas violências constituem essas relações e refletem o quanto os agentes executivos dos Direitos Humanos não usufruem plenamente dos direitos trabalhistas, do direito à publicidade da(s) identidade (s), do direito à saúde integral, entre outros, tendo como consequências o sofrimento dos trabalhadores e a reverberação destas torna-se mais um ente constitutivo das violências das/nas práticas laborais.
O processo de formação profissional na segurança pública, geralmente iniciado com a “semana zero”[1], é constituído de violências psicológicas, morais e, em alguns casos, até físicas. Este rito de passagem para o início da vida profissional é o ponto ígneo de naturalização das violências que estarão presentes durante a carreira, com outros recursos mas com a mesma lógica: a obediência do subordinado ao conhecido RQQ[2] (Regulamento do Que eu Quero), ou similares. As punições disciplinares informais durante o curso de formação como, por exemplo, não ter horário para início e término das atividades educativas, podendo iniciar de madrugada e sem hora para terminar; a possibilidade de não ter folga no final de semana; a possibilidade de humilhações perante todo o corpo de alunos; entre outras, permanecem no convívio de toda a carreira.
O possível uso desses mecanismos de controle das relações de trabalho figurou brevemente no noticiário em maio de 2023. Um vídeo sobre a audiência de custódia do policial civil que assassinou quatro colegas de trabalho postado na plataforma YouTube, foi assistido por quase 860 mil vezes, mesmo o canal tendo apenas 21,7 mil contas inscritas. O policial civil elenca como possíveis motivações do crime ter denunciado a falta de condições de trabalho e ser “perseguido” por superiores, sendo punido com escalas de plantões sem ter final de semana com a família por seis meses; exercer outras atividades de trabalho sem ter a responsabilidade ou competência; transferência para locais de trabalho distantes da residência, tendo pouca convivência com a família; impedimento de poder trabalhar em serviço extra remunerado; entre outras.
Na mesma página há mais de 4 mil comentários convergindo com as informações de assédio, apresentando relatos de práticas presenciadas ou sofridas durante a carreira de agente de segurança pública. Entre os relatos, há o seguinte com 658 aprovações:
Sou militar da reserva. Trabalhei na assessoria jurídica do meu batalhão. Cheguei nos 30 anos de serviço destruído psicologicamente. A falta de regulamentação e o excesso de poder que os regulamentos colocam nas mãos dos comandantes submetem os militares a tratamento desumano. O judiciário irresponsavelmente diz que não pode analisar o mérito administrativo, e é justamente aí que acontecem os abusos.
Apesar de haver outro trágico fato no mesmo mês, com motivação semelhante e ocorrido em São Paulo envolvendo policiais militares e a motivação relatada foi a mudança de escala que impedia o convívio familiar e o indeferimento do pedido para poder resolver problemas familiares, há outras consequências sem registros oficiais sobre as motivações: os pedidos de baixa, a autoexclusão do serviço. Podemos acrescentar ainda que esse tipo de assédio não é único nas atividades laborais na segurança pública e que não há registros oficiais.
Apresentar publicamente orientação sexual ou de identidade de gênero diferente da cis e heteronormatividade pode resultar em “visibilidade” indesejada. Esse tema já foi incipientemente debatido neste espaço anteriormente. Todavia, cabe destacar o processo administrativo que submeterá a primeira oficial travesti da Polícia Militar de Santa Catarina para atestar a capacidade moral e profissional para exercer suas funções, como determina o Ato nº 1401/2023 do Governo do Estado. Se a orientação sexual permite a “passabilidade”, a publicidade de uma identidade não cis pode ser passível do “RQQ”. A insegurança em apresentar-se como realmente é demonstra a ausência do direito de ser.
Há construção de vias que garantam os Direitos Humanos aos agentes de segurança pública internamente, todavia ainda são frágeis as soluções como, por exemplo, da PMDF que normatizou o combate ao racismo institucional (Portaria 972 de 07 de julho de 2015) mas perdeu força-prática com as mudanças de comandos, assim como perdeu força o debate sobre Gênero na instituição e foi revogado o Escritório de Gênero (Portaria 959 de 05 de março de 2015). Lógica semelhante ocorrido em âmbito federal com a Portaria Interministerial SEDH/MJ de 02 de dezembro de 2010 que estabelecia Diretrizes Nacionais de Promoção e Defesa de Direitos Humanos dos Profissionais de Segurança Pública, que teve pouca receptividade prática nos entes federativos.
Neste sentido, o que há de concreto são “vocacionados” (agentes de segurança pública, acadêmicos ou representantes de classe) que furam o “limbo” institucionalizado e criam janelas de oportunidades para debaterem e criarem ações para sensibilizar e normatizar parcos acessos aos direitos. Essa solitária construção de direitos não assegura objetivamente o resultado, tendo como consequência a continuidade do sofrimento físico e psíquico pela “loucura do trabalho” e a manutenção das violências como tecnologias de controle administrativo com diversas técnicas de execução, pois o limbo administrativo é um ponto facilitador que unifica a tradição punitiva à administração de recursos e de pessoas contemporâneas. Portanto, a omissão estatal nessa temática figura como mais um elemento para o que se vê como política federal, estadual e municipal de combate na Segurança Pública.
[1] Rito comum em instituições militares que difundiu para outras instituições de segurança pública caracterizado por um período de adaptação à rotina militar com punições a todo ato que pode caracterizar indisciplina por não obediência a normas simples como, por exemplo, atraso de segundos, não falar no tom adequado, andar em determinados espaços ou não esticar os lençóis da cama ao levantar, mesmo sem saber a hora que irá levantar para inspeção.
[2] Por haver uma lacuna normativa e por também haver a construção de uma disciplina ideal, há um limbo normativo que “permite” construções normativas pelo superior hierárquico que regulará dispositivos de permissão ou acessos a direitos e punições informais.