Cecília Olliveira
Diretora-executiva do Instituto Fogo Cruzado
Atirar é uma escolha individual, mas consequência de um esforço coletivo. O dedo que aperta o gatilho só está ali posicionado porque alguém lhe deu arma, munição e autoridade. A arma e a munição saíram das prateleiras de alguma fábrica, que, por sua vez, recebeu a autorização de uma autoridade pública para funcionar. No Brasil de 2022, dedos têm apertado gatilhos a todo o tempo.
Dias depois do caso do agente penal federal José Guaranho, que matou a tiros o guarda municipal Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu (PR), o vice-presidente Hamilton Mourão deu entrevista tratando o assassinato como evento de “fim de semana”, em que o autor “bebe e aí extravasa as coisas”. O que o general da reserva do Exército não disse é que as brigas de finais de semana não são mais como eram nos tempos da brilhantina. Sair para se divertir e voltar para casa sem presenciar uma tragédia armada tem sido cada vez mais raro. Foi por isso que o Instituto Fogo Cruzado criou um indicador de tiroteios em bares no Grande Recife, região com alto índice de casos como esse. Os números assustam: só no primeiro semestre de 2022 foram 22 mortos e 18 feridos em tiroteios em bares. São muitos casos para poucos finais de semana. Algo está acontecendo.
Nos primeiros seis meses do ano, a Região Metropolitana do Recife teve 896 tiroteios por motivos diversos, mais do que qualquer outro semestre desde que o Fogo Cruzado começou a atuar na região, em 2018. Entre 708 mortos e 328 feridos, estavam seis crianças e 72 adolescentes. O futuro morre por tiros, também.
Na parte mais abaixo do mapa brasileiro, a população do Grande Rio segue dormindo e acordando com o barulho das balas voando. De janeiro a junho foram 1.828 tiroteios, 499 mortos e 450 feridos. É sufocante morar em um lugar em que 158 pessoas são baleadas por mês, em média.
O Brasil do século XXI é marcado por três momentos decisivos para a política de armas. Em 2003, o Estatuto do Desarmamento criou o Sistema Nacional de Armas, plataforma gerida pela Polícia Federal para identificar e cadastrar as informações referentes à produção, à posse e ao porte de armas de fogo no país. Todas as armas que estão em território nacional devem ser registradas, assim como seus proprietários, e o cidadão civil que deseja ter uma arma precisa passar por alguns balizadores, como comprovar idoneidade, efetiva necessidade e ocupação lícita. Dois anos depois, em 2005, um plebiscito levou o país a pensar em conjunto: “o comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”. Com direito a propaganda obrigatória na televisão e debates na mídia, a população decidiu que o comércio não deveria ser proibido.
O caldo, que esteve em fogo baixo ao longo destes anos, parece prestes a transbordar. O terceiro momento decisivo é agora. O presidente Jair Bolsonaro venceu as últimas eleições com a bandeira de ampliar o acesso às armas para qualquer brasileiro. Essa foi uma promessa de campanha rapidamente cumprida. Os Colecionadores, Atiradores e Caçadores (CACs) passaram a ter acesso a até 60 armas, metade delas podendo ser fuzis, e a 180 mil munições por ano. Hoje, no Brasil, há mais CACs armados do que militares. Armas de uso restrito, inclusive fuzis, passaram a estar disponíveis a qualquer cidadão.
Bolsonaro também tentou esticar para uma década a validade do teste de avaliação psicológica para posse de armas, mas o Conselho Federal de Psicologia (CFP) resistiu e deixou em dois anos a partir da data de emissão. Pode vir mais por aí: no Senado e na Câmara há projetos de lei para permitir que CACs circulem com as armas municiadas pelas ruas, e que a propaganda de armas de fogo seja liberada.
O segundo semestre, marcado pelas eleições, será fundamental para projetarmos como será a segurança pública dos estados e do país nos próximos anos. O dedo no gatilho é o mesmo que vota nas urnas.