Quantitativo das mortes em decorrência de intervenção policial em Santa Catarina
A existência de dados fidedignos é essencial para trazer accountability aos órgãos de segurança pública, sobretudo num cenário no qual é feito uso político do aumento das mortes provocadas pela polícia, como se demonstrasse o “sucesso” de políticas de segurança pública
Simão Baran Junior
Promotor de Justiça em Santa Catarina; titular da Promotoria Regional de Segurança Pública de Chapecó (14ª PJ). Mestre em Gestão e Políticas Públicas (Segurança Pública) pela EAESP/FGV
A ausência da divulgação de dados na segurança pública já é questão conhecida e discutida de longa data, fruto de omissão deliberada do poder público em reconhecer a importância da transparência e da accountability na discussão sobre a violência no país. Essa falta tem sido suprida por organizações não governamentais, a exemplo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com os dados gerais do Anuário de Segurança Pública, e do Instituto Sou da Paz, com “Onde Mora a Impunidade”, que traz a taxa de esclarecimento de homicídios no país.
No âmbito das mortes em decorrência de intervenção policial, o CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) tem divulgado o relatório Pele como Alvo, trazendo dados sobre o fenômeno, inclusive com o recorte racial para alguns estados brasileiros. Em larga medida, essas informações estão indisponíveis pelo fato de as secretarias de segurança pública não as divulgarem rotineiramente. Também se verifica a ausência desses dados nos portais dos Ministérios Públicos, via de regra.
Mesmo o painel existente no âmbito do CNMP, em razão da falta de registros fidedignos de todas as ocorrências de MDIP nos Estados e também da falta de profundidade dos dados disponíveis, acaba não permitindo o uso que se espera, ou seja, diagnóstico da realidade e planejamento de políticas públicas adequadas de segurança.
Pensando em suprir essa falta, no âmbito do Núcleo de Enfrentamento de Crimes de Racismo e Intolerância (NECRIM) no MPSC, foi divulgado, em 2023, o Relatório sobre MDIP’s[1], abrangendo o período de 2018 a 2022. Posteriormente, no âmbito da 14ª Promotoria de Justiça de Chapecó, com atribuição na tutela difusa da segurança pública, foi divulgado o Anuário de Segurança Pública de Chapecó (2024)[2], com dados atualizados de 2023 sobre a proporção entre a letalidade policial e as mortes violentas intencionais em todo o Estado.
E o que os dados revelam?
ANO | MDIP | TAXA MDIP |
2012 | 71 | 1,1 |
2013 | 57 | 0,9 |
2014 | 91 | 1,4 |
2015 | 63 | 0,9 |
2016 | 61 | 0,9 |
2017 | 78 | 1,1 |
2018 | 102 | 1,4 |
2019 | 79 | 1,1 |
2020 | 86 | 1,2 |
2021 | 73 | 1 |
2022 | 45 | 0,6 |
2023 | 81 | 1,06 |
2024 | 92 | 1,14 |
Do pico de MDIP’s observado em 2018 até o ano de 2022, Santa Catarina vinha conseguindo obter diminuição dos homicídios e crimes violentos em paralelo com a diminuição das mortes em decorrência de intervenção policial.
A reversão brusca no número de MDIP em apenas um ano, anulando os ganhos observados em anos anteriores, revela como esse número pode flutuar em razão da incidência de fatores externos, a exemplo de mudanças de perfis na gestão pública, pois não se observam mudanças nas dinâmicas criminais de 2022 para 2023.
Mesmo com o grande aumento de 2022 para 2023, em termos de taxa de MDIP por 100 mil habitantes, esta voltou ao patamar dos anos anteriores, com flutuação entre 0,6 a 1,4. Quando se olha para os estados do Brasil, Santa Catarina ainda aparece entre aqueles com menores taxas.
Um dado interessante calculado e divulgado no relatório do NECRIM-MPSC foi a proporção entre as mortes violentas intencionais e as mortes em decorrência de intervenção policial. Tomando-se como base a proporção de 10% como limite superior (acima do qual haveria indicativo de excesso no uso da força letal), dessa proporção se extrai informação relevante a guiar o debate público e também a ação ministerial no controle externo.
Neste ponto, utilizando-se a classificação de regiões IBGE de região imediata e mediata, duas regiões se destacam em Santa Catarina.
A primeira é a de Florianópolis, com especial concentração de MDIP’s na capital. Parece relevante perceber que a capital catarinense possui a mesma conformação geográfica do Rio de Janeiro, com áreas irregularmente ocupadas em morros e encostas, nas quais o estado ainda não exerce plena soberania, e populações vivendo sob o jugo de facções criminosas. Disso resulta o mesmo padrão de atuação das forças de segurança, com alta letalidade policial. Especificamente na cidade de Florianópolis, em 2023, a proporção MDIP/MVI alcançou 40,91%. Para 2024, houve redução para 33,33%. São valores ainda elevados. Há procedimento aberto na promotoria competente para apurar essa alta taxa.
A segunda região com alta proporção encontrada foi a de Itajaí, cidade portuária que se encontra na rota de escoamento de cocaína para fora do país, portanto, com maior presença do crime organizado.
Fazendo-se o recorte racial das MDIP’s em relação à proporção de negros no Estado, os resultados não fogem de outros levantamentos, com desproporção desfavorável à população negra.
Em face a tema politizado, com o uso do aumento das mortes provocadas pela polícia como demonstração de “sucesso” de políticas de segurança pública, a existência de dados fidedignos e com profundidade sobre o tema é essencial para trazer accountability para os órgãos de segurança pública, incluindo-se o Ministério Público, o qual detém a atribuição para o exercício do controle externo da atividade policial. Sem informação de qualidade, palavras e ações tendem a ser meramente simbólicas.

REFERÊNCIAS
[1] Disponível em https://portal.mpsc.mp.br/noticias/no-dia-internacional-para-a-eliminacao-da-discriminacao-em-evento-no-mpsc-pesquisadora-defende-que-o-direito-deve-ter-a-perspectiva-dos-oprimidos-
[2] Disponível em https://www.mpsc.mp.br/noticias/levantamento-de-promotoria-de-justica-revela-que-quase-90-dos-homicidios-sao-esclarecidos-em-chapeco–.