Múltiplas Vozes 19/03/2025

Quantitativo das mortes em decorrência de intervenção policial em Santa Catarina

A existência de dados fidedignos é essencial para trazer accountability aos órgãos de segurança pública, sobretudo num cenário no qual é feito uso político do aumento das mortes provocadas pela polícia, como se demonstrasse o “sucesso” de políticas de segurança pública

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Simão Baran Junior

Promotor de Justiça em Santa Catarina; titular da Promotoria Regional de Segurança Pública de Chapecó (14ª PJ). Mestre em Gestão e Políticas Públicas (Segurança Pública) pela EAESP/FGV

A ausência da divulgação de dados na segurança pública já é questão conhecida e discutida de longa data, fruto de omissão deliberada do poder público em reconhecer a importância da transparência e da accountability na discussão sobre a violência no país. Essa falta tem sido suprida por organizações não governamentais, a exemplo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com os dados gerais do Anuário de Segurança Pública, e do Instituto Sou da Paz, com  “Onde Mora a Impunidade”, que traz a taxa de esclarecimento de homicídios no país.

No âmbito das mortes em decorrência de intervenção policial, o CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) tem divulgado o relatório Pele como Alvo, trazendo dados sobre o fenômeno, inclusive com o recorte racial para alguns estados brasileiros. Em larga medida, essas informações estão indisponíveis pelo fato de as secretarias de segurança pública não as divulgarem rotineiramente. Também se verifica a ausência desses dados nos portais dos Ministérios Públicos, via de regra.

Mesmo o painel existente no âmbito do CNMP, em razão da falta de registros fidedignos de todas as ocorrências de MDIP nos Estados e também da falta de profundidade dos dados disponíveis, acaba não permitindo o uso que se espera, ou seja, diagnóstico da realidade e planejamento de políticas públicas adequadas de segurança.

Pensando em suprir essa falta, no âmbito do Núcleo de Enfrentamento de Crimes de Racismo e Intolerância (NECRIM) no MPSC, foi divulgado, em 2023, o Relatório sobre MDIP’s[1], abrangendo o período de 2018 a 2022. Posteriormente, no âmbito da 14ª Promotoria de Justiça de Chapecó, com atribuição na tutela difusa da segurança pública, foi divulgado o Anuário de Segurança Pública de Chapecó (2024)[2], com dados atualizados de 2023 sobre a proporção entre a letalidade policial e as mortes violentas intencionais em todo o Estado.

E o que os dados revelam?

ANO MDIP TAXA MDIP
2012 71 1,1
2013 57 0,9
2014 91 1,4
2015 63 0,9
2016 61 0,9
2017 78 1,1
2018 102 1,4
2019 79 1,1
2020 86 1,2
2021 73 1
2022 45 0,6
2023 81 1,06
2024 92 1,14

Do pico de MDIP’s observado em 2018 até o ano de 2022, Santa Catarina vinha conseguindo obter diminuição dos homicídios e crimes violentos em paralelo com a diminuição das mortes em decorrência de intervenção policial.

A reversão brusca no número de MDIP em apenas um ano, anulando os ganhos observados em anos anteriores, revela como esse número pode flutuar em razão da incidência de fatores externos, a exemplo de mudanças de perfis na gestão pública, pois não se observam mudanças nas dinâmicas criminais de 2022 para 2023.

Mesmo com  o grande aumento de 2022 para 2023, em termos de taxa de MDIP por 100 mil habitantes, esta voltou ao patamar dos anos anteriores, com flutuação entre 0,6 a 1,4. Quando se olha para os estados do Brasil, Santa Catarina ainda aparece entre aqueles com menores taxas.

Um dado interessante calculado e divulgado no relatório do NECRIM-MPSC foi a proporção entre as mortes violentas intencionais e as mortes em decorrência de intervenção policial. Tomando-se como base a proporção de 10% como limite superior (acima do qual haveria indicativo de excesso no uso da força letal), dessa proporção se extrai informação relevante a guiar o debate público e também a ação ministerial no controle externo.

Neste ponto, utilizando-se a classificação de regiões IBGE de região imediata e mediata, duas regiões se destacam em Santa Catarina.

A primeira é a de Florianópolis, com especial concentração de MDIP’s na capital. Parece relevante perceber que a capital catarinense possui a mesma conformação geográfica do Rio de Janeiro, com áreas irregularmente ocupadas em morros e encostas, nas quais o estado ainda não exerce plena soberania, e populações vivendo sob o jugo de facções criminosas. Disso resulta o mesmo padrão de atuação das forças de segurança, com alta letalidade policial. Especificamente na cidade de Florianópolis, em 2023, a proporção MDIP/MVI alcançou 40,91%. Para 2024, houve redução para 33,33%. São valores ainda elevados. Há procedimento aberto na promotoria competente para apurar essa alta taxa.

A segunda região com alta proporção encontrada foi a de Itajaí, cidade portuária que se encontra na rota de escoamento de cocaína para fora do país, portanto, com maior presença do crime organizado.

Fazendo-se o recorte racial das MDIP’s em relação à proporção de negros no Estado, os resultados não fogem de outros levantamentos, com desproporção desfavorável à população negra.

Em face a tema politizado, com o uso do aumento das mortes provocadas pela polícia como demonstração de “sucesso” de políticas de segurança pública, a existência de dados fidedignos e com profundidade sobre o tema é essencial para trazer accountability para os órgãos de segurança pública, incluindo-se o Ministério Público, o qual detém a atribuição para o exercício do controle externo da atividade policial. Sem informação de qualidade, palavras e ações tendem a ser meramente simbólicas.

 

REFERÊNCIAS
[1] Disponível em https://portal.mpsc.mp.br/noticias/no-dia-internacional-para-a-eliminacao-da-discriminacao-em-evento-no-mpsc-pesquisadora-defende-que-o-direito-deve-ter-a-perspectiva-dos-oprimidos-
[2] Disponível em https://www.mpsc.mp.br/noticias/levantamento-de-promotoria-de-justica-revela-que-quase-90-dos-homicidios-sao-esclarecidos-em-chapeco–.

 

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