Múltiplas Vozes 19/10/2022

Quantas pessoas estão presas no Brasil?

É necessário e desejável que cada base divulgue a metodologia e critérios de forma transparente e acessível, de modo que seja possível ao menos observar e comparar informações produzidas seguindo os mesmos critérios durante determinado período

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Carolina Cutrupi Ferreira

Doutora em Administração Pública e Governo EAESP/FGV

A pergunta simples esconde uma resposta complexa, que passa pelo debate sobre produção de estatísticas criminais, decisões do Supremo Tribunal Federal e formulação e implementação de políticas públicas articuladas em nível federal e estadual.

Desde 2004, o Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça e Segurança Pública (Depen/MJSP) compila e divulga estatísticas do sistema penitenciário nacional, a partir de formulários preenchidos pelos gestores de cada estabelecimento prisional. Os estados da federação são responsáveis pela gestão da imensa maioria dos estabelecimentos e, por consequência, pela produção e fornecimento de dados sobre os respectivos sistemas prisionais ao Depen.

No entanto, alguns estados repassavam dados parciais ou desatualizados sobre suas prisões, e outros sequer encaminhavam as informações ao Depen. O resultado dessa prática é que por anos as estatísticas nacionais do Infopen/Depen careciam de consistência e representatividade em relação à população prisional em sua totalidade. Por esse e outros motivos o Depen empreendeu esforços na reformulação da metodologia e dos formulários de coleta de dados, e também dos mecanismos de validação dos dados fornecidos pelas secretarias estaduais.

A partir do ano de 2014, o órgão federal investiu na produção de informações prioritárias relacionadas ao perfil das pessoas sob custódia estatal (idade, gênero, escolaridade, condições de saúde, etc.) e a respectiva situação processual, assim como sobre a estrutura física do estabelecimento (capacidade total, número de vagas disponíveis, espaços destinados à oferta de saúde, educação, visitas, entre outras).

Essas medidas foram um primeiro passo para a coleta de informações prisionais consistentes, confiáveis e úteis para subsidiar o processo decisório do gestor público na área de segurança e também do Poder Judiciário. Nesse contexto, em duas oportunidades os ministros do STF discutiram a importância da elaboração de um “diagnóstico da situação do sistema penitenciário e propostas de solução dos problemas”.

O primeiro julgamento foi a decisão liminar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347, na qual se reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário nacional. Já no julgamento do Recurso Extraordinário n. 641.320, o Tribunal estabeleceu critérios para reduzir o déficit de vagas prisionais e determinou ao Conselho Nacional de Justiça a estruturação de um “cadastro nacional de presos”, posteriormente materializado no “Banco Nacional de Monitoramento de Prisões” (BNMP 2.0).

Além do Infopen e do BNMP 2.0, outros órgãos governamentais e não governamentais produzem dados quantitativos e qualitativos sobre o sistema prisional, como o “Sistema em números” do Conselho Nacional do Ministério Público, o Monitor da Violência (parceria entre o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública), o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e da Pastoral Carcerária. Cada órgão adota metodologias distintas de coleta, periodicidade, cobertura e abrangência dos estabelecimentos prisionais.

A esta altura já é possível concluir que a existência de levantamentos de dados com diferentes critérios implica em números de pessoas presas divergentes entre si. E isso fica ainda mais claro quando observamos em detalhe a metodologia adotada na construção de cada base de dados.

Um exemplo bastante interessante é como cada base de dados define “pessoa presa”. O BNMP 2.0 não abrange pessoas em cumprimento de medida cautelar diversa da prisão (monitoramento eletrônico ou prisão domiciliar) ou em regime semiaberto ou aberto. Por outro lado, contempla o cadastro de pessoas presas em razão de dívidas de natureza alimentícia. Já o Infopen registra pessoas custodiadas em unidades penais comuns estaduais e federais, mas não aquelas em estabelecimentos militares ou carceragens da Polícia Civil.

Não é possível apontar qual base é mais ou menos consistente e confiável sobre a totalidade de pessoas presas no país, e tampouco comparar seus dados sem considerar as significativas diferenças na produção destes dados. Mas é necessário e desejável que cada base divulgue a metodologia e critérios de forma transparente e acessível, de modo que seja possível ao menos observar e comparar informações produzidas seguindo os mesmos critérios durante determinado período.

As diferenças entre as bases de dados e os principais reflexos na produção de estatísticas prisionais no Brasil são discutidas no texto “Convergências e divergências metodológicas das bases de dados penitenciários no Brasil”, que integra a obra “Estatísticas de segurança pública: produção e uso de dados criminais no Brasil”. Fica o convite para todos os leitores e leitoras para conhecerem mais sobre as escolhas técnicas e políticas que influenciaram na construção dessas informações e como podem influenciar a formulação de políticas públicas penitenciárias no país.

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