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Quando ocorrências policiais vão além das prisões: o Boletim Social em Presidente Prudente

Iniciativa representa um imenso potencial por oferecer novos modelos para a atuação das corporações policiais, que ainda carece de destinações criativas

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Alan Fernandes

Coronel da Reserva da Polícia Militar/SP; Doutor em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas; membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Renata Fassina

Tenente-coronel da Polícia Militar/SP; Doutora em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo CAES (PMESP); Comandante do 18ºBatalhão de Polícia Militar do Interior

Uma das evidências mais encontradas no mundo sobre o trabalho policial é de que a maior parte dos atendimentos realizados não se refere a questões criminais, mas a uma gama mais cotidiana de aflições que ocupam o universo humano. Para os policiais, em especial de uma radiopatrulha, seus acionamentos recaem, principalmente, no universo de conflitos familiares, vicinais, comerciais, trabalhistas não-violentos (ou ao menos não-criminais).

Apesar do tom prosaico, essa atividade não é pouco importante. Para as pessoas que demandam a polícia, significa que as composições privadas já não são eficazes para dar conta daquele conflito, o que demanda a participação estatal para uma atenção qualificada à questão, para o arbitramento de um conflito ou para uma atenção mais atenta às vulnerabilidades existentes no conflito. Assim, as diferenciações burocráticas que o Estado provê ao caso, retalhando-o em suas diferentes áreas – sobretudo em uma dicotomia segurança pública versus áreas sociais – gera um afastamento de um atendimento multidisciplinar. No interior de uma mesma estrutura de Estado, diferentes campos institucionais perfazem suas ações de modo pouco articulado. De um ponto de vista prático, resulta que os cidadãos recorrem a diferentes órgãos para o atendimento de suas questões. Ou, ainda pior, que somente um dos aspectos seja observado, a depender da entrada que o caso tenha tido: se o caso é criminal, exaurem-se em providências policiais, sem que os envolvidos tenham uma atenção qualificada em termos sociais, aprofundando as aflições entre vítimas, autores e outros envolvidos.

Por essa razão, uma iniciativa em curso promovida por uma rede de agentes públicos na região de Presidente Prudente merece ser observada com maiores cuidados. Isso em razão da resposta estatal que ela promete entregar para o atendimento dos casos. Com o nome de Boletim Social, trata-se de um esforço de integração entre diferentes atores da administração pública, tendo por base o compartilhamento dos registros dos atendimentos realizados pela Polícia Militar, por meio de uma plataforma digital – chamada de Sistema Órion. Com um aprendizado de cerca de cinco anos, o sistema conta com a integração de diversos órgãos pertencentes às secretarias estaduais e municipais da educação (Delegacias de Ensino e Escolas), da assistência social (Centros de Referência de Assistência Social e suas especificidades), saúde, infância e juventude (Conselho Tutelar). Na atualidade, a plataforma conta com 186 órgãos distribuídos em 21 diferentes municípios da região do oeste paulista, pertencentes à área de responsabilidade do 18º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (18º BPM/I), que abrange Presidente Prudente e região, que tem população estimada de 400 mil pessoas.

Para dar dimensão do projeto, entre 2018 e 2021, mais de 4.500 Boletins Sociais foram lançados pela Polícia Militar no Sistema Órion e encaminhados aos diferentes participantes da rede. Os principais registros são de violência e importunação sexual, agressões, discussões, desavenças, ameaças e ocorrências com entorpecentes, sendo estas responsáveis por mais de 50% dos casos. São as mulheres, crianças e adolescentes aqueles que mais figuram como vítimas desses eventos ou que, de alguma forma, são vulnerabilizados pelas dinâmicas encontradas pela Polícia Militar nos atendimentos.

Diferentemente de outras iniciativas já em andamento no Brasil, em que os centros de operações redistribuem as chamadas de emergência para os órgãos que compõem o centro, como Corpo de Bombeiros, Guardas Municipais e Órgãos Municipais de Trânsito, aqui os atendimentos costumeiros de polícia ostensiva são direcionados às patrulhas. Após o comparecimento ao local, o policial militar elabora, por meio eletrônico, o Boletim de Ocorrência – além de outras providências que lhe caibam – o qual, a depender do histórico, receberá, por meio do sistema integrado, a destinação ao órgão que tenha alguma atribuição sobre o caso.

Em que pese a Polícia Militar ser a detentora da plataforma, não há fiscalização ou cobrança por parte da Corporação sobre os demais integrantes da rede, sendo todos voluntários e cada um dentro de sua atividade, compartilhando dados que são necessários para solução do caso.

O Boletim Social e o Sistema Órion, plataforma que permite seu compartilhamento, iniciaram em 2016 com as primeiras capacitações a policiais militares e aos integrantes da rede, com o intuito de conhecer o modo de trabalho, possibilidades e competências de cada órgão da rede com relação às possíveis demandas. No início, os cadastros, boletins de ocorrência e documentos eram inseridos manualmente. Atualmente o Boletim Social está reformulado, contando com aplicações de diversos tipos de datasets que foram utilizados para o aprimoramento estatístico com o intuito de gerar uma melhoria nas análises preditivas e prescritivas, possibilitando agilidade no cadastro e inserção automática do Boletim de Ocorrência, tendo em vista o compartilhamento de sistemas e banco de dados.

Concluindo, o Boletim Social apresenta, já com resultados subsistentes, a capacidade de apresentar outra modulação de resposta de atendimento social ao se valer do contato policial com os casos que requerem uma resposta transversal. Do ponto de vista do trabalho das polícias, objeto principal deste texto, representa uma imensa potencialidade de oferecer novos modelos para a atuação das corporações policiais, cuja discussão no Brasil ainda carece de destinações criativas e, ao mesmo tempo, efetivas. Mas, sobretudo, oferta possibilidades de se construir políticas públicas que possam conjugar diferentes racionalidades estatais para as violências que percorrem o cotidiano brasileiro.

 

 

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