Perícia em evidência 14/12/2022

Quando a Prova Técnica é a Única Voz da Vítima – Parte 2

Observação: esta coluna, assim como a anterior, são especiais; aludem ao Dia do Perito Criminal, 04 de dezembro

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Cássio Thyone Almeida de Rosa

Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Prosseguindo com o tema iniciado na coluna anterior, o nosso segundo caso faz parte de uma história em que trabalhei e que, da mesma forma, ilustra muito bem a nossa matéria.

Aqui os nomes são fictícios, mas o enredo é também real. Tudo aconteceu de fato!

Estamos em 2001. No dia 4 de novembro desse ano, na cidade de Samambaia (DF), localizada a 35 km de Brasília, Fernanda, uma jovem de 17 anos, deixa sua casa e não mais é vista com vida. A família registra seu desaparecimento. Logo em seguida, no dia 5 de novembro, mas sem que a polícia de Brasília tivesse conhecimento de imediato, um corpo do sexo feminino parcialmente carbonizado é encontrado numa área de cerrado, na localidade denominada Campo Limpo, na região de Luziânia (GO), cidade que compõe o denominado entorno do Distrito Federal.

A perícia de local de crime é realizada pela equipe daquele estado e o corpo encaminhado para o IML de Luziânia, onde os exames revelam como causa da morte traumatismo cranioencefálico causado por dois projéteis de arma de fogo, cujas lesões de entrada estavam localizadas na região occipital (parte posterior da cabeça).

Seguindo parte dos protocolos previstos à época para cadáveres não identificados, o corpo foi sepultado após suas impressões digitais terem sido coletadas e arquivadas.

A polícia de Brasília, trabalhando no caso do desaparecimento da menor de idade, acaba por se deparar com a informação de que um corpo, com características aproximadas daquelas da pessoa buscada, fora encontrado no entorno do DF. De posse das impressões digitais daquele corpo, coletadas no IML de Luziânia, solicita um confronto papiloscópico para o Instituto de Identificação do Distrito Federal, onde Fernanda era identificada civilmente. O confronto realizado entre as impressões questionadas e aquelas constantes do Prontuário Civil de Fernanda, executado pelos papiloscopistas revela-se positivo e a polícia passa então a investigar um caso de homicídio.

Após as primeiras investigações, surge como suspeito um ex-namorado de Fernanda: Cláudio, um jovem com algumas passagens pela polícia, algumas motivadas por receptação de veículos furtados e outras por porte de drogas. Mas Cláudio, que era também o pai de Cristine, única filha de Fernanda, construíra em seu depoimento à polícia um álibi no qual afirmava que no dia em que Fernanda desaparecera, estivera com sua então namorada à época e um amigo, de nome Flávio, desfrutando de uma folga e divertindo-se, sem ter nenhum conhecimento do paradeiro de Fernanda ou qualquer ligação com seu desaparecimento.

Buscando provas que pudessem desconstruir esses depoimentos, o delegado do caso encaminha para o Instituto de Criminalística do DF, no dia 20 de agosto de 2002, portanto nove meses depois da morte de Fernanda, um veículo pertencente a Flávio, o melhor amigo de Cláudio. É assim que temos contato com o caso. O veículo, um VW Voyage, ano e modelo 1991, seria examinado por nós.

Na solicitação contida no memorando que encaminhava o veículo, o delegado explicitava seu objetivo. Desejava que marcas de pneumáticos encontradas na cena do crime, mostradas em fotografias no laudo pericial que fazia parte dos autos, pudessem ser comparadas aos pneus que rodavam no veículo então encaminhado para exames.

Após submeter o veículo a testes nos quais foram produzidas marcas com as bandas de rodagens de seus pneumáticos em substrato idêntico àqueles mostrados nas fotos do laudo pericial, a saber, solo exposto; os peritos empreenderam uma busca rigorosa no veículo, aquilo que denominamos um “pente fino”, considerado um exame sempre necessário em casos como esse.

As imagens obtidas no ensaio solicitado revelaram-se inúteis para o confronto esperado e idealizado pelo delegado. O motivo, nas fotos obtidas na noite em que o corpo fora encontrado, a resolução das fotografias não revelava detalhes suficientes para um confronto. Os exames prosseguem então com a busca de vestígios na parte interna do veículo.

Nessa busca, os peritos encontram alguns fios de cabelo e também manchas escurecidas capazes de chamar a atenção. São manhas verificadas no porta-malas e sobretudo na face inferior do assento do banco posterior, algumas que apresentavam continuidade para o interior do revestimento de espuma que constituía o banco do veículo.

Os primeiros testes em laboratório foram animadores, resultando positivo para sangue. Devido ao tempo decorrido do fato e às condições adversas de contaminação, o material encaminhado ao laboratório foi reencaminhado diretamente para o laboratório de DNA Forense, unidade que compõe o Departamento de Polícia Técnica do DF, onde os peritos ali lotados puderam ter também uma importante participação no caso.

No laboratório de DNA, os peritos se depararam com dois problemas a resolver: o primeiro dizia respeito a possível contaminação do material a ser analisado (amostras de sangue) encontrava-se impregnado no banco do veículo, segundo a hipótese mais otimista, a nove meses; e ainda sob condições de exposição a muitos fatores contaminantes, dentre sujidades, produtos oriundos de lavagens do banco, microrganismos, etc. O segundo problema dizia respeito às amostras-padrão a serem empregadas no exame, já que a vítima investigada se encontrava sepultada.

Os problemas foram então solucionados: quanto à contaminação, os peritos conseguiram purificar o material analisável utilizando uma coluna de sílica, o que proporcionou uma remoção dos interferentes da amplificação; já em relação ao segundo problema, empregaram uma técnica que evitou uma exumação, tendo sido coletadas amostras em quatro irmãos vivos da vítima e ainda em sua filha. A técnica denominada paternidade reversa, que reconstituía os perfis genéticos dos genitores da vítima (também já falecidos) mostrou-se mais adequada e menos desgastante que recorrer-se a uma exumação.

Os resultados expressos no laudo do Laboratório de DNA Forense foram conclusivos: “Pela análise do perfil genético dos irmãos e da filha da vítima, foi possível calcular a possibilidade de que o DNA extraído do sangue impregnado na espuma do banco do veículo fosse da vítima de homicídio, com uma probabilidade de 99,9%.

Com o resultado, Cláudio e Flávio foram indiciados por crime de homicídio qualificado. A voz de Fernanda finalmente fora ouvida!

Para concluir, lembramos da importância da Perícia Criminal através de uma frase muito conhecida em nosso meio, proferida por um outro mestre, e cuja repetição deveria ser cotidiana em nossa mente:

A função pericial requer duas condições ao perito oficial: preparação técnica e moralidade. Não se pode ser bom perito se falta uma dessas condições. O dever de um perito é dizer a verdade; no entanto, para isso é necessário: primeiro saber encontrá-la e, depois querer dizê-la. O primeiro é um problema científico, o segundo é um problema moral.” (Nerio Rojas)

 

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