Cássio Thyone Almeida de Rosa
Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Pense em um cadáver na cena de crime! Ele não apenas fala…ele “grita”. Mas é preciso estar preparado para ouvi-lo. Apesar da cena estática, esse corpo implora para ser ouvido. Quer contar sua história, quer que alguém o ouça. Podem ter sido minutos, horas ou até mesmo dias, mas ele precisa relatar todos os fatos que culminaram em sua morte. Quer também apontar um autor. Clama por justiça!
A quem recorrer? Aqui emerge a figura do perito forense, como primeiro interlocutor dessa vítima. O perito que estiver preparado para esse “diálogo” tudo fará para traduzir os vestígios materiais em uma dinâmica possível para explicar o fato e até, quem sabe, apontar um ou mais autores.
Há casos em que sequer existe uma testemunha. Os fatos acontecem longe dos olhos, longe das câmeras ou de qualquer outro meio de registro. Resta então o último fio de esperança: o trabalho pericial no local de crime.
Para ilustrar nosso tema, comecemos com um clássico, um fato narrado no livro “Os Mortos Contam Sua História”, de Jürgen Thorward.
Trata-se do Caso Gouffé. O ano é 1889. No dia 27 de julho, um caso de desaparecimento é registrado. Um meirinho (espécie de oficial de justiça) morador de Paris desaparece e a polícia investigativa, denominada Sûreté, através de seu chefe que se chamava Goron, passa a investigar o fato. A história rapidamente ganha as manchetes de jornais da época e o caso repercute por todo o país. Em 13 de agosto do mesmo ano, um corpo aparece às margens do Rio Ródano, junto a uma pequena comunidade denominada Millery, a 15 km de Lion. A notícia alcança Goron e ele solicita informações sobre o corpo, julgando que poderia se tratar de Gouffé. De imediato foi informado que não se tratava do corpo que tanto buscava, já que as caraterísticas físicas, segundo o relatório do médico que realizou a necrópsia, eram distintas. Alguns dias depois foram encontrados no mesmo rio pedaços de madeira que exalavam um cheiro de cadáver, o que fez com que um policial suspeitasse de sua ligação com o corpo encontrado. Os pedaços de madeira faziam parte de um baú e em um fragmento da tampa foram verificadas as inscrições: “De Paris 1231 – Paris, 27/07/188? – Trem Expresso 3. Para Lion – Perrache I”.
Como o último algarismo estava ilegível, um dos detetives de Lion opinou que deveria ser “8”, ou seja, o baú teria sido enviado a Lion um ano antes do desaparecimento de Gouffé. Mesmo assim, Goron não estava convencido e procurou o setor de despachos de bagagens em Paris e, consultando os registros, descobriu que na data de 27 de julho de 1888 nenhuma encomenda tinha sido despachada. Entretanto, no mesmo dia do ano de 1889, um baú com o peso de 105 kg passara pela estação com destino a Lion.
Apesar da afirmação do médico que fizera a necrópsia em Lion, de que o corpo encontrado em Millery não se tratava de Gouffé, o investigador acreditava em seu feeling, suas suspeitas eram maiores que suas certezas. Outro detalhe fizera com que o caso se tornasse mais confuso: um cocheiro tinha testemunhado de modo irresponsável, alegando ter ajudado três indivíduos a descarregar um baú na data inicialmente suspeita e reconheceu, através de fotografias, três malfeitores, que assim foram acusados pelo assassinato. O caso estava solucionado para a polícia de Lion. O cadáver de Millery foi então sepultado.
Com a autorização do juiz responsável pelo caso, Goron consegue a autorização para prosseguir nas investigações. A informação da data do despacho do baú de 105 kg exatamente no dia do desaparecimento de Gouffé fez com que o cacheiro que testemunhou fosse preso e confessasse ter inventado a história para receber o benefício de manutenção de sua licença para trabalhar, já que estivera envolvido em uma pequena fraude e queria causar uma boa impressão à polícia.
Após a confissão do cocheiro e as novas descobertas, Goron exigiu que o cadáver desconhecido fosse exumado, o que foi feito sob forte relutância. Desta vez, a necrópsia seria conduzida por uma figura que se tornaria um dos maiores destaques da nascente Medicina Legal: Alexandre Lacassagne, então com 46 anos, responsável pela cadeira dessa ciência na Universidade de Lion. É dele uma conhecida frase: “Uma necrópsia malfeita não pode ser revisada! ”
Lacassagne, além de médico, atuava em ramos que hoje também são da alçada da Criminalística, tais como a toxicologia, análise de padrões de manchas de sangue e na pesquisa de lesões de projéteis e sua relação com armas específicas. Mais tarde ele teria como seu discípulo e assistente Edmund Locard, um pioneiro da Criminalística, outro mestre venerado na perícia. É dele a célebre frase: “Todo contato deixa vestígio”.
Lacassagne começa a trabalhar nos restos daquele cadáver putrefato. Sem refrigeradores ou luvas, com suas mãos nuas e em meio ao cheiro de carne em decomposição, o mestre demonstrava toda a sua paixão pela Medicina Legal em meio a uma atividade tão repulsiva. Dedicou onze (sim, onze!!) dias a essa necrópsia. Analisou o que restou dos tecidos moles, separou depois o esqueleto, fez medições antropométricas. Chegou assim à estimativa de altura do cadáver que seria 1,78m (registros militares de Gouffé traziam exatamente esse valor) e pode afirmar, ainda, que, devido a uma espécie de atrofia observada nos músculos da perna direita, a qual devia ser mais fraca que a esquerda, sobretudo na parte inferior desse membro, o cadáver devia ter mancado ou claudicado ligeiramente durante a vida, isto tudo devido a uma tuberculose no osso da tíbia que quando jovem este teria contraído. Deformações na rótula encontradas pelo médico permitiram que ele afirmasse ainda que o indivíduo em questão também sofrera de “água no joelho”. O pai e uma amiga confirmaram a questão da fraqueza da perna direita de Gouffé, que, de tão vaidoso, conseguia esconder muito bem essa pequena deformidade. Quando criança, após cair num monte de pedras, Gouffé sofrera de uma inflamação na canela que durara anos. Um médico que tratou dele em Paris também confirmou a Goron a suspeita sobre o problema no joelho e a atrofia na perna direita.
Os ossos revelaram ainda a possível causa da morte: sufocação violenta, o que foi demonstrado pela ruptura dos dois cornos superiores da cartilagem da tireoide. Havia ainda a estimativa de idade feita pelo mestre legista: “cerca de 50 anos” (Gouffé tinha 49 anos!). Faltava ainda uma questão importante a se resolver: os cabelos do cadáver de Milerry eram pretos, enquanto os de Gouffé eram castanhos escuros, o que fora confirmado pela família e pelo seu barbeiro. Goron, a pedido de Lacassagne, ordena a seus policiais que recolham amostras de cabelos de Gouffé em seu apartamento. Elas vieram presas a uma escova de cabelos que ele utilizava. Além de comparar exaustivamente esses fios de cabelos com os do cadáver em questão, Lacassagne lava por inúmeras vezes os fios questionados, que se mostraram, então, não mais pretos, mas castanhos. O mestre, que já havia descoberto anos antes que os cabelos podiam mudar frequentemente sua coloração após a morte, solicitou ainda exames químicos para certificar-se que nem Gouffé nem o cadáver de Milerry tinham sido tingidos. Nenhum dos elementos químicos normalmente encontrados em tinturas para cabelos usadas a época foram encontrados. Goron agora estava pronto para afirmar:
-Senhores, apresento-lhes monsieur Gouffé!
Em 1891, Michel Eyraud, um dos responsáveis pela morte de Gouffé, foi executado; sua cúmplice, Gabrielle Bompard, foi condenada a 20 anos de trabalhos forçados. A voz de Gouffé fora ouvida!!