Múltiplas Vozes 10/05/2023

A droga das profecias

Recentemente, várias reportagens sobre o K9 e o Fentanil manifestam o receio de que essas novas drogas poderão até substituir o crack na Cracolândia. Isso não é impossível, mas devagar com o andor

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Guaracy Mingardi

Analista criminal e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A capacidade humana de inventar novos meios de se entorpecer parece cada vez mais desenvolvida. Durante milênios foram usadas determinadas plantas ou ervas com essa finalidade – ou seja, coisas relativamente naturais. Porém o crescente conhecimento científico, principalmente de química e biologia, modificou e amplificou o efeito desses insumos. Um exemplo de uma substância, quase que universalmente aceita e legal, é o dos derivados do álcool. Durante muito tempo a embriaguez dependeu das bebidas fermentadas, que tem teor alcoólico relativamente baixo. Mas aí veio a destilação, que produz bebidas mais fortes, capazes de alterar mais profundamente a percepção da realidade – o que, no final das contas, é o que deseja a maioria dos usuários.

Para usar outro exemplo, mais próximo da realidade atual, temos o caso da maconha, que nas últimas décadas recebeu vários inputs. Um deles devido ao cruzamento de tipos com maior porcentagem de THC nas fazendas hidropônicas da Holanda. Depois simplesmente através da manipulação genética. Portanto, a maconha consumida hoje tem pouca similitude com a dos anos da contracultura. Coisa similar, porém anterior, ocorreu com o ópio, usado durante milênios, e que virou um produto industrial de muita saída no mercado ilegal, a heroína. O mesmo se pode dizer das folhas de coca, produto andino que virou cocaína ou crack. A principal evolução, porém, veio nas drogas sintéticas, normalmente alucinógenos.

E são essas que normalmente assombram nossas polícias e parte da imprensa. Os alucinógenos atuam de duas formas: nos seus usuários, alguns dos quais perdem totalmente a noção da realidade, e na imaginação da segurança pública. Há vinte anos, o medo era de que o ecstasy tomasse conta do mercado ilegal e, aos poucos, acabasse sendo o principal vício dos jovens. Há uns poucos anos a bola da vez foi o G ou GHB (gama-hidroxibutirato), que teria dominado as festas na classe média alta. Mais recentemente apareceram outros dois compostos: o K9 e o Fentanil, ambos (supostamente) com potencial de serem 100 vezes mais potentes que a maconha. E o medo é sempre o mesmo. Que a nova droga ganhe o mercado, substitua o crack e a cocaína e se popularize até entre os usuários mais pobres. Nos últimos dias várias reportagens sobre essas duas substâncias manifestavam o receio de que iria até substituir o crack na Cracolândia. O que não é impossível, mas devagar com o andor!

Não é porque são as duas substâncias que mais crescem nos EUA que o mesmo acontecerá aqui. Aliás, as duas ao mesmo tempo é ainda mais difícil. O mercado das grandes cidades brasileiras não muda tão rápido, principalmente entre os usuários mais pobres. Haja visto o pouco uso da heroína em nosso país. Por décadas, a droga mais consumida nos Estados Unidos, mas aqui só usada por uns poucos, normalmente  mais abastados. Afinal de contas, ela é cara. E o ecstasy, tão temido, desde sempre é coisa de alguns privilegiados. Claro que ambas as substâncias são mais utilizadas agora do que há 30 anos, mas nunca ameaçaram a tradicional maconha e os já quarentões derivados da folha de coca.

Outro fator a considerar é o interesse dos que abastecem o mercado. Em São Paulo, por exemplo, o PCC é hegemônico. E seus principais líderes têm interesse no tráfico, tanto nacional como internacional. E tem suas rotas, pontos de venda e clientes estabelecidos. Portanto só se novas drogas renderem muito mais é que irão mudar a mercadoria ofertada. Ou seja, são mercados estabelecidos, controlados por uns poucos. Muito diferente do modelo americano.

De qualquer forma esses dois novos produtos já chegaram ao mercado nacional, produzindo várias apreensões. Com um preço superior ao do crack e da marijuana, mas razoavelmente acessível, porém não para todos. O teste definitivo para ver se vão “pegar” vai ser o da receptividade dos usuários e da facilidade de colocar as novas drogas no país e fazê-las chegar ao público alvo.

Não é impossível, porém, que tomem uma parte do mercado. Periodicamente a moda, o preço ou a disponibilidade em geral alteram os produtos usados. Basta relembrar como, no início dos anos 90, a principal droga usada pelos garotos em situação de rua era a cola de sapateiro! Inclusive provocando legislação que proibia sua venda para menores. Ai veio o crack e tudo mudou. Voltando mais no tempo, a principal droga das classes médias e altas antes da Segunda Guerra era a morfina. Cadê ela?

O problema é que toda vez que aparece um novo produto muita gente, que deveria esperar pra ver, apresenta-o como a bola da vez. Isso pode desviar recursos ou mesmo atrapalhar o trabalho repressivo e/ou educativo. Por outro lado, se vingar a profecia, aqueles que prognosticaram a nova era ficam por cima da carne seca. Isso lembra muito aquelas adivinhas que todo final de ano anunciam isto ou aquilo, morte de um presidente, uma guerra, etc. Um dia vão acertar, e aí a maioria das pessoas vai esquecer os vários erros anteriores e lembrar apenas do acerto. Tem muita gente que vive dessa fama imerecida, mas fazer o quê? Esse é o jogo dos profetas, que pelo menos desde Nostradamus ganham fama e fortuna na base de falas genéricas e de um acerto para cada dez erros.

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