Profecia de Messias e Morte de Jesus
Bolsonaro já disse que o Brasil só melhoraria quando houvesse uma guerra civil que mataria 'uns 30 mil'. O contexto da fala de 1999 era outro, mas a lógica de guerra ao inimigo interno e a solução da morte são parte da profecia de Messias e da morte de vários Jesus
Gilvan Gomes da Silva
Formado em Antropologia e em Sociologia, com mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
A frase dita por Jair Messias em apoio à tortura em plenário da Câmara Federal, entre outros eventos públicos que estão nas diversas mídias, era o pano de fundo para alguns quando tentava fundamentar a aprovação da Excludente de Ilicitude para policiais. Messias alega que um erro do agente de segurança sob violenta emoção não pode justificar sua condenação. Contextualizando com fatos recentes, entre várias abordagens de guardas municipais, policiais militares, civis e rodoviários, a de Genivaldo de Jesus torna-se emblemática por ser resultado de uma outra fala profética de Messias. Em uma paráfrase, ele dizia que tinha que matar mais de 30 mil pessoas, mesmo morrendo inocentes, por tratar-se de uma guerra. O contexto da fala em 1999 era outro, mas a lógica de guerra ao inimigo interno e a solução da morte são parte da profecia de Messias e da morte de vários Jesus.
A abordagem policial seguida de morte de Jesus é emblemática porque demonstra os filtros sociopoliciais estruturados e estruturantes. As motociatas de Messias são marcadas pela falta de uso de capacete e, por diversas vezes, utiliza motocicletas da PRF. Às autoridades, aos grupos de poder, tudo. Jesus foi abordado por não usar o capacete. A Jesus, os rigores além da lei pelas autoridades. Duas pessoas violam a mesma regra, e há duas abordagens policiais, ilegais, uma resulta em morte. O problema não é somente a “formação” policial e não é fato isolado e por falta de conhecimento sobre o que houve. Há vários vídeos de policiais de diversas agências ensinando em cursos preparatórios com relatos criminosos. Há um que apresenta detalhes semelhantes ao ocorrido na abordagem fatal a Jesus, inclusive destaca que é tortura o que faz; outro descreve a violência contra torcedores em uma partida de futebol e demonstra o quanto era uma prática comum e coletiva por policiais militares no Rio de Janeiro; na mesma plataforma educacional estava disponível o relato de outro policial-professor sobre vários homicídios e torturas que teria cometido em serviço que já estariam prescritos. O currículo oculto previamente ao ingresso parece revelar que as práticas não são pontuais e que, apesar das mudanças curriculares, é tido como normal e está presente em várias agências de segurança. São vários Jesus sofrendo torturas fatais, daquelas que Messias celebrou.
Todavia, a necessária punição aos agentes que torturam pode diminuir a sensação de injustiça, mas é uma solução simples para uma questão complexa. Câmeras no uniforme também oferecem uma sensação de controle da atividade policial, mas também é uma resposta simples e incompleta para a mesma questão complexa. Surgem até soluções para outros problemas, como a desmilitarização e/ou unificação das polícias, que não resolvem a questão em si. As soluções e o processo de implementação demonstram as resistências institucionais tradicionais e a falta de fundamentação científica e política na construção de intervenções pontuais sem ter objetivo nítido, fundamentação científica na escolha do processo de intervenção e metas mensuráveis.
Como destacou a cientista e professora Jacqueline Sinhoretto, a atuação da Polícia Rodoviária Federal não tinha um histórico de alta letalidade e passou a ter operações com resultado morte, inclusive em cooperações com outras agências policiais, e vislumbra como um possível fator a ser analisado a gestão institucional. Concordando com a pesquisadora, acrescento somente o que também está nas entrelinhas da manifestação acadêmica e no conjunto de pesquisas que realizou: o tipo de violência policial é histórico, sistêmico e uma das ferramentas estruturais de manutenção das desigualdades na sociedade.
Desta forma, parte da solução é quem gerencia as agências e quem nomeia os gestores e gestoras. Atualmente, a tortura, além de estar no ensino de cursinho e em algumas abordagens, está como solução profética/mítica classificatória de quem nomeia a gestão das agências policiais federais e, por mimetismo e/ou convicção, nos agentes de segurança estaduais e municipais como técnica de trabalho, diminuindo as ações de manutenção dos direitos e aumentando as ações de repressão. Em resumo, outras profecias/soluções (com fundamentação científica, metas mensuráveis, etapas de implementações realizáveis e controle dos processos) são necessárias para que o destino dos Jesus brasileiros seja o mesmo da maior autoridade do poder executivo ao ser abordado por uma infração de trânsito, contravenção ou crime, fundamentado na legalidade e respeito aos Direitos Humanos.
Não há dúvidas que as agências policias estão em processo de profissionalização. Afirmo isso a partir da incipiente construção científica das Ciências Policiais e da Segurança Pública de encontro à tradição e a partir da nitidez do objeto e objetivo do policiamento alinhados aos preceitos legais de um Estado Democrático de Direito. Dito isso, as agências de segurança pública, que outrora somente controlavam parte da população, estão em processo de modificação para também garantir os direitos pertinentes ao ordenamento jurídico e a mitigação do sofrimento. Protegem ao construírem ações de enfretamento às violências domésticas, exploração sexual, tráfico de pessoas, racismo, violências contra a comunidade LGBTQIA+, entre vários outros crimes e violências. As raízes históricas e as diferenças contemporâneas de poderes sociais, políticos, econômicos e jurídicos criam um paradoxo de repressão de parte da população e proteção dos seus direitos. O direcionamento das ações (de repressão ou proteção) e a aceleração do processo de profissionalização é de responsabilidade dos chefes dos poderes executivos, dos gestores das agências, e dos operadores de direitos da segurança pública.