Privatização de presídios e o descumprimento de direitos fundamentais no Brasil
Os processos de privatização da execução penal representam não só uma mudança no modelo de gestão prisional, mas também um projeto político-econômico-cultural que reforça a desumanização existente e expressa o desprezo da sociabilidade neoliberal frente aos diretos fundamentais
Christiane Russomano Freire
Doutora em Ciências Criminais pela PUCRS, Professora do PPG em Política Social e Direitos Humanos da UCPel/RS
Maria Palma Wolff
Doutora em Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais pela Universidade de Zaragoza/ES, Pesquisadora do LabGEPEN/UNB
A privatização dos serviços penais teve origem na realidade das prisões dos Estados Unidos. O surgimento de um setor empresarial no ramo da gestão prisional criou um poderoso interesse econômico pela manutenção do superencarceramento naquele país. Neste sentido, Angela Davis[1] refere que “não é possível separar a crescente indústria da punição na economia em desenvolvimento da era do capitalismo global (…) como todas as corporações capitalistas, as prisões privadas funcionam no princípio da maximização do lucro”. Naquele contexto foram evidenciados diversos problemas nas unidades administradas pela iniciativa privada, as quais registravam casos de agressões, contrabando, motins e menos programas educacionais e de treinamento profissional. Assim, desde 2021, uma série de medidas tem levado à progressiva eliminação das unidades privadas. No entanto, quando o país que se tornou paradigma na privatização do sistema carcerário começa a tomar medidas decisivas para a reversão dessa política, ela passa a ganhar força no contexto brasileiro.
O modelo de gestão privada pressupõe a delegação de responsabilidades de controle, inspeção, movimentação, monitoramento, processos administrativos disciplinares e dos atendimentos previstos na Lei de Execução Penal a servidores contratados pelas empresas, terceirizados ou temporários, sem expertise no âmbito das atividades e dinâmicas prisionais.
O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) chama a atenção para a precariedade e para a ausência de transparência das gestões prisionais privadas, sejam no modelo de cogestão ou no modelo de parceria público-privada. Enfatiza o exercício ilegal de atividades exclusivas de agentes públicos por parte de agentes privados, as apostas na ampliação dos lucros com restrições em investimentos capazes de garantir direitos básicos das pessoas presas. Além disso, o processo de privatização de serviços essenciais da custódia privilegia a transferência de recursos públicos à iniciativa privada em detrimento da valorização e qualificação dos servidores, o que compromete também a possibilidade de responsabilização do Estado quando de práticas de tratamentos cruéis, desumanos e degradantes.[2]
Atualmente, existe no Brasil um total de 1.384 estabelecimentos prisionais; destes, 1.287 contam com o modelo de gestão pública, 34 com o modelo de cogestão, 5 com gestão na modalidade público-privada; e em 58 há a gestão em parceria com organizações sem fins lucrativos.
O Decreto nº 11.498/2023 ampliou a lista dos setores que “poderão ter projetos de investimentos considerados prioritários por proporcionarem benefícios ambientais e sociais relevantes”, incluindo áreas prioritárias como a educação, a saúde, saneamento básico, a segurança pública e o sistema prisional, dentre outros. Prevê ainda isenção ou redução de impostos, a abertura de linhas de crédito para financiar projetos e a segurança jurídica aos investidores com respaldo do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES), além do compromisso de remunerar a empresa pelo período de 30 anos.
Com a entrada em vigor desse decreto no mês de abril de 2023, foi possível a realização do leilão na Bolsa de Valores de São Paulo, que garantiu à empresa Soluções Serviços Terceirizados Eirelli, única concorrente, a concessão para a construção e gestão do Complexo Prisional de Erechim. Prevê-se a construção de dois módulos com 26 mil m² cada, compreendendo 1.200 vagas, estimados em 150 milhões de reais.
O Estado do Rio Grande do Sul conta com 41.861 pessoas presas, 39.456 homens e 2.405 mulheres, em 103 estabelecimentos prisionais, todos com Modelo de Gestão Pública. No ano de 2019 o Estado foi selecionado para participar do projeto piloto que seleciona empresa para a construção e operação de estabelecimentos prisionais no município de Erechim, em parceria público-privada. Em 2022, foi lançado o primeiro edital para a realização das obras, leilão que restou frustrado devido à ausência de interessados.
O custo mensal individual previsto é de R$ 6.990/preso; assim, com a lotação máxima (1.200 pessoas privadas de liberdade), a empresa receberá em contrapartida do Estado mensalmente aproximadamente R$ 8,4 milhões, o que totaliza R$ 100 milhões por ano e em torno de R$ 3 bilhões ao final dos 30 anos de duração do contrato. Considerando que a média do custo mensal por preso no Brasil corresponde a R$ 1.803 e de R$ 1.974 no RS, o argumento de redução de gastos públicos fica anulado.
Outro aspecto preocupante diz respeito à empresa vencedora do leilão. Com matriz no estado de São Paulo, possui atuação nas áreas de alimentação, limpeza e conservação, limpeza urbana, manutenção predial, conservação de áreas verdes, controle de pragas, obras de engenharia, gestão de frota e logística e gestão prisional. Entre 2011 e 2020 foi alvo de denúncias de irregularidades na prestação dos serviços contratados. Entre as quais: prefeitura de Tatuí/SP, Companhia Saneamento do estado de Goiás, Metrô de São Paulo, prefeitura de Marilia/SP, prefeitura de Salvador/BH, sistemas prisionais dos estados de São Paulo e de Santa Catarina.
Os contratos firmados com a iniciativa privada parecem querer favorecer o encarceramento em massa, com a aposição de cláusulas contratuais que exigem taxas mínimas de lotação das prisões, aliadas à remuneração da empresa por cada pessoa encarcerada, com a submissão dos corpos negros a trabalhos forçados e aumento das margens de lucro com a precarização ainda maior do sistema prisional. Ao abrir mão do poder de punir, o poder público acaba se desresponsabilizando cabalmente em relação aos já tão vilipendiados direitos fundamentais das pessoas presas, as quais se tornam mercadorias cujo valor deve ser repassado às empresas privadas. Nesse sentido, quanto maior o número de pessoas encarceradas, maior o lucro.
É preciso pensar na ampla cadeia penal, que se estende desde a elaboração das leis penais, passando pela abordagem policial, atuação da mídia e as representações sobre segurança pública e punição ali disseminadas; ao preservar os interesses econômicos, naturalizam-se as graves infrações de direitos que sempre existiram nesse campo e se justifica a utilização da punição como importante instrumento de seletividade social e a prisão como locus de eliminação dos socialmente indesejáveis. O processo de privatização em curso consolida a relação entre o espectro punitivo brasileiro e o “complexo industrial prisional” e a preocupação de gerar lucros para a iniciativa privada, acrescentando mais uma camada no conhecido contexto de criminalização da pobreza, com suas determinações de raça, classe e gênero. E, para sustentar essa relação, estamos fazendo ouvidos moucos aos problemas evidenciados nas experiências existentes, ao maior custo por pessoa presa e às irregularidades da empresa vencedora do leilão.
A flexibilização de uma atribuição do Estado e dos controles democráticos sobre ela representam um enfraquecimento da Constituição Federal e dos direitos fundamentais ali afirmados, o que deveria ser alvo de grande preocupação de todos e todas nós. Portanto, os processos de privatização da execução penal representam muito mais do que uma simples mudança no modelo de gestão prisional; representam um projeto político-econômico-cultural que não apenas reforça a desumanização existente, como expressa o desprezo da sociabilidade neoliberal frente aos diretos fundamentais, fragilizando ainda mais o papel do Estado na efetivação da democracia nas suas mais diferentes dimensões.