Prevenção à tortura contra adolescentes: velhas práticas e a conivência na manutenção do menorismo
Ao analisarmos o cotidiano da porta de entrada do sistema de justiça juvenil, percebemos que pouco se faz para a prevenção dessa violação, apesar de inúmeras pesquisas demonstrarem como adolescentes são um público mais vulnerável à violência policial, sobretudo adolescentes negros
Fernanda Machado Givisiez
Pesquisadora do LabGepen – Laboratório de Gestão de Políticas Penais da UnB. Mestre em Direitos Humanos e Liberdades Públicas pela Université Paris X – Nanterre
De acordo com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Pacto San José da Costa Rica (1969), e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos – PIDCP (1966), a pessoa detida ou presa deve ser levada, sem demora, à presença de um juiz ou de autoridade competente. Esses documentos internacionais – o primeiro de abrangência regional, e o segundo, global – são da década de 1960 e foram internalizados no ordenamento jurídico brasileiro apenas em 1992. A implementação de mecanismos que garantissem o direito descrito ocorreu de forma ainda mais lenta.
Mais de 20 anos depois, o Conselho Nacional de Justiça implementou as audiências de custódia no país[1], com o duplo objetivo de analisar a legalidade e regularidade das detenções, bem como prevenir e combater os casos de tortura cometidos durante a prisão em flagrante. Essas audiências são uma importante medida para combater a superpopulação carcerária, uma vez que contribuem para a diminuição do número de presos provisórios e evitam a privação de liberdade sem efetivo amparo legal.
Ainda que possamos indicar questões relevantes a serem aprimoradas nas audiências de custódia[2], é inegável o avanço provocado com sua implementação, sobretudo a possibilidade de trazer para a agenda política nacional o debate sobre tortura no momento da apreensão policial e a atuação qualificada (ou não) dos atores do sistema de justiça criminal diante do problema.
No entanto, um público ainda não foi abarcado por esse avanço. Ao adolescente a quem se atribua a prática de ato infracional não foi estendida essa possibilidade de garantia aos seus direitos humanos no momento de sua apreensão em flagrante. Apesar de inúmeras pesquisas demonstrarem como adolescentes são um público mais vulnerável à violência policial, sobretudo adolescentes negros[3], ao analisarmos o cotidiano da porta de entrada do sistema de justiça juvenil, percebemos que pouco se faz para a prevenção dessa violação.
O Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) adotou, com base na Constituição Federal (1988) e na Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), a doutrina da proteção integral e o princípio da prioridade absoluta, que reconhecem crianças e adolescentes como sujeitos de direitos que devem receber proteção prioritária. Ademais, indicou regime jurídico específico como resposta para os adolescentes acusados de cometerem ato infracional, qual seja, as medidas socioeducativas. Outro princípio que merece destaque é o da legalidade, previsto na Lei do Sinase, o qual estabelece que ao adolescente não pode ser oferecido tratamento mais gravoso que ao adulto.
Quando se evoca o debate sobre audiências de custódia na justiça juvenil, há diversos argumentos contrários e a favor de sua implementação para adolescentes. No campo das vozes contrárias a esse avanço estão, notadamente, atores do sistema de justiça[4], e o principal fundamento trazido é que, dentre os procedimentos previstos no ECA, há o instituto da oitiva informal pelo Ministério Público (MP). Autores já aprofundaram sobre esse tema[5]. De toda forma, um ponto que vale ser destacado é o fato de que, quando previstas no Estatuto, as oitivas informais possuíam, dentre outros objetivos, entender o MP como custos legis, atuando pelo interesse superior do adolescente. Porém, o que se percebe na prática é que a oitiva informal, em geral reduzida a termo, se tornou um momento para que o MP pudesse fortalecer a persecução infracional e, muitas vezes, é vetor de violação de direitos processuais de adolescentes.
Nesse sentido, é falso dizer que as oitivas informais poderiam substituir a audiência de custódia como momento para se prevenir tortura. Ademais, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já se pronunciou afirmando que a apresentação ao MP não substitui a apresentação à autoridade judicial prevista na Convenção[6]. Ainda no campo internacional, o Comitê de Direitos Humanos da ONU, ao interpretar o termo “sem demora” previsto no PIDCP, entendeu que o prazo pode chegar a 48 horas no caso de adultos. Contudo, para adolescentes, o período não deve ser superior a 24 horas. Outrossim, o Comitê sobre os Direitos da Criança definiu[7] que a condução sem demora ocorre quando o adolescente detido ou privado de liberdade é apresentado à autoridade judicial em 24 horas. Ou seja, o sistema internacional de proteção de direitos humanos indica como adolescentes apreendidos ou privados de liberdade são um público mais vulnerável, que necessita de proteção especial e, assim como os adultos, deve contar com mecanismos estatais de proteção ao seu direito de não ser torturado.
Nesse contexto, passados 33 anos da promulgação do ECA e 11 anos da Lei do Sinase, percebemos como ainda convivemos com velhas práticas decorrentes do paradigma da situação irregular, que não reconhece adolescentes como sujeitos de direitos, mas sim de objeto da tutela estatal. O que podemos concluir é que hoje, no Brasil, adolescentes recebem tratamento mais gravoso do que aquele conferido ao adulto, embora sejam mais vulneráveis à violência policial. Principalmente se realizarmos o recorte racial, já que a seletividade da justiça juvenil atinge, sobremaneira, adolescentes e jovens negros[8]. E tudo isso ocorre sob o olhar conivente, com honrosas exceções, dos atores do sistema de justiça, que deveriam proteger essas pessoas reconhecidas como em condição peculiar de desenvolvimento.