Profissão Polícia 26/04/2023

Pressão como rotina: do topo à base

A escolha pela carreira policial exige a transformação comportamental e psicológica à base de muito estresse físico e mental, condição para se forjar profissionais persistentes, ativos, atentos, destemidos, seguros e bem preparados para lidar tanto com situações de confronto armado quanto com ações comunitárias preventivas

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Juliana Lemes da Cruz

Doutoranda em Política Social (UFF), Cabo na PMMG e Conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Alex Leal Gonçalves

Bacharel em Direito, Cabo na PMMG

Retomamos a questão levantada por Lívio Rocha no texto sobre suicídio policial e publicado no Fonte Segura, edição 178. Quem são as pessoas que trabalham na polícia?

Na realidade mineira, percebe-se uma mudança no perfil dos novos policiais militares incorporados à instituição. Ocorre que o nível superior de formação passou a ser exigido como requisito para ingresso há quase uma década. Dentre as mudanças que essa nova condição permitiu, destacamos posturas mais firmes e independentes dos/as soldados ingressantes. Parece-nos que essa nova geração está disposta a ajudar a pensar os rumos da segurança pública apresentando suas percepções no corpo de um universo historicamente fechado para detentores de funções operacionais, em nível de execução. A exigência de ingresso de graduados/as academicamente trouxe para a caserna uma diversidade de pessoas, geralmente, com mais idade, que eram profissionais de diversas áreas quando civis, e detentores de certa experiência, tanto no que tange às especificidades laborais, quanto à forma de lidar com superiores hierárquicos, o que envolve o traquejo nos relacionamentos interpessoais.

Nesse contexto militar, o mais simbólico dos elementos é a farda, pela estética, pela representação de força e pelos sentimentos que provoca. Dentre os quais, o orgulho dos que a envergam. Para tanto, a escolha de seguir esse caminho exige a transformação comportamental e psicológica à base de muito estresse físico e mental, condição para se forjar profissionais persistentes, ativos, atentos, destemidos, seguros e bem preparados para lidar tanto com situações de confronto armado, quanto com ações comunitárias preventivas.

No entanto, o cotidiano dos quarteis ensina que outros modos de formatação de policiais aos moldes dos perfis institucionais requeridos aparecem ao longo dos anos, de forma planejada ou mesmo involuntária. Aquele sujeito que fez a escolha de se mudar radicalmente, abdicando de questões importantes que fizeram parte de sua vida, se vê diante de um sacerdócio e da nobre missão de ser instrumento de cuidado e, por vezes, de controle das massas.

Falamos de “cuidado” porque é nesse lugar que nos enxergamos ao desempenharmos as funções operacionais confiadas aos que lidam com a população mediando conflitos, oficializando reclamações, respondendo denúncias e orientando. Falamos do dia-a-dia da prestação de serviços, do que nos faz sentido e dos desafios para o cumprimento dessa missão.

Diferentemente da maioria dos servidores públicos, o policial militar estadual possui inúmeras restrições e limitações no que tange à sua mobilidade enquanto agente social. Greves não são legitimadas, reinvindicações precisam ser bem analisadas e mesmo a orientação político-ideológica constituem arenas restritas ou de feroz disputa. Por esse motivo, não raro, policiais escolhem não se posicionar sobre determinados assuntos. Sabem bem que, no ambiente de caserna, certos posicionamentos não admitem recuo, não têm volta. Ou o policial sustenta sua postura sob alto custo ou cede.

Ao contrário do que possa parecer, não se trata de quebra dos princípios basilares que norteiam as forças policiais, trata-se de apontar que constituem relações de trabalho tão bem engendradas no discurso de cultura institucional que poucos percebem a atuação das subculturas na captura camuflada da gestão institucional. Nesse molde, mais parece um terror um chamado oficial da chefia: Soldado 01, o comandante mandou você se apresentar na sala dele. De imediato, o subordinado já pensa: o que será que eu fiz? O que falei? O que será que aconteceu? A busca é de uma resposta para uma questão que ainda não se sabe qual é. […] a pressão existente nas palavras, na entonação de voz, nas ordens emanadas e nas implicações que cada uma dessas atitudes impacta na vida de um militar nunca conseguirão ser expressadas por palavras, pois é sentimento”.

A autocobrança é automaticamente acionada e um turbilhão de emoções começa a guiar seu cérebro e definir seus impulsos corporais. Reflexo da carga de estresse, evidente nos impactos à qualidade de vida do/a policial/trabalhador/a em médio e longo prazos. As pressões cotidianas por resultados deixam estragos pouco conhecidos em profundidade, porque não são publicizados e manifestam-se em cadeia, do mais alto da pirâmide, chegando à base. Desconsiderando especificidades locais, as tarefas devem se cumprir. E isso corre o risco de acontecer à revelia de um planejamento estratégico exequível ao trabalhador da ponta.

Como resultados desse processo: bloqueios individuais em distintas áreas da vida; reprodução de hábitos automatizados no ambiente policial em contextos não-policiais; a falta de acolhimento ao cidadão demandante em razão da necessidade do cumprimento de metas institucionais; o sentimento de mecanização do trabalho, com exigência de respostas aos policiais que mais parecem programáveis e reprogramáveis, como máquinas; prejuízos à capacidade cognitiva; e o EVITÁVEL adoecimento do trabalhador.

Talvez não seja possível mensurar as peculiaridades que a profissão policial militar exerce sobre seus componentes. Nesse rumo, a psicologia e a psiquiatria servem de importantes termômetros de como a tropa está lidando com os momentos que atravessam sua vida. Assim como na sociedade civil, no âmbito da caserna existem movimentações sujeitas a fricções que geram mais ou menos atrito. São muito mais constantes e pouco vistas em ambientes fora da caserna. Às vezes, apenas sentidas pela tropa.

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