Múltiplas Vozes 01/02/2023

Precisamos urgentemente de um projeto de desradicalização das forças policiais

Uma polícia politicamente orientada e parcial se torna incapaz de prestar serviços de maneira adequada, pois tenderá a orientar suas ações de acordo com afinidades e desconfianças políticas, podendo em ultima instância se tornar um risco para a própria democracia

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Ariadne Natal

Pesquisadora de pós-doutorado do Peace Research Institute Frankfurt (PRIF)

Os ataques às sedes dos Três Poderes que ocorreram em Brasília, em 8 de janeiro de 2023, quando uma multidão de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiu e depredou os edifícios símbolos da democracia brasileira, representam o capítulo mais sombrio de um enredo de terror e de contínuas ameaças à democracia que testemunhamos nos últimos anos.

As cenas de vilipêndio e ódio registradas em exaustão pelos próprios partícipes chocaram não apenas pelo seu conteúdo violento e abjeto, mas principalmente porque, embora aquele tenha sido um ataque exaustivamente ameaçado e anunciado, ele não foi prevenido ou adequadamente contido pelas forças de segurança responsáveis por salvaguardar a República. Pelo contrário, as imagens e relatos indicam que as diminutas forças policiais presentes na ação escoltaram os vândalos, permitiram sua entrada na Praça dos Três Poderes, ofereceram pouquíssima resistência às invasões e depredações e ainda permitiram que a maior parte dos criminosos se evadisse com facilidade.

A percepção de que houve uma ação problemática da polícia neste episódio é compartilhado ao menos em parte pelos próprios agentes de segurança. Pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) com 636 profissionais da segurança pública entre os dias 24 e 27 de janeiro aponta que os agentes identificam diversas falhas de segurança no emprego e na atuação das forças policiais frente às invasões.

Segundo os agentes entrevistados, a maior parte da responsabilidade pelo ocorrido recai sobre o comando da Polícia Militar do Distrito Federal. Aproximadamente 76% dos entrevistados concordam em parte ou totalmente que houve falha de planejamento, 72% apontam falha de comando e outros 58% aludem para uma omissão do comando das forças policiais. O aspecto político também foi explorado e a responsabilidade do governo do Distrito Federal foi apontada como preponderante por 51% dos profissionais entrevistados, indicando que atribuem um papel secundário ao Executivo distrital neste caso.

No que diz respeito aos policiais atuando diretamente em campo, os entrevistados atribuem a eles uma parcela de responsabilidade, mas em menor grau quando em comparação com o papel do comando. Cerca de 56% dos profissionais entrevistados concordam totalmente ou em parte que houve omissão do policiamento e 59% reconhecem que a conduta dos policiais foi inadequada e sem o devido rigor para realizar o controle de distúrbios e proteção dos prédios. A percepção de que os agentes falharam leva 62% a concordar totalmente ou em parte com a necessidade de punição para os policiais que confraternizaram e tiraram fotos com os invasores ao invés de reprimi-los.

Desde o ocorrido, diversas ações foram tomadas para retomar o controle do país e enquadrar aqueles que realizaram e permitiram os violentos ataques à democracia brasileira. Dentre elas destaca-se a intervenção federal na segurança pública do DF, que foi considerada por 59% dos entrevistados uma saída menos traumática para a pacificação e solução da crise.

Muito embora as reais responsabilidades dos atores envolvidos ainda estejam sob apuração para determinar a extensão e os limites de sua incompetência, leniência e intencionalidade, o episódio dantesco de 8 de janeiro escancarou e evidenciou algo que vinha sendo anunciado há muito por pesquisadores e observadores: parte considerável das forças policiais foi tragada por um movimento autoritário em um processo de radicalização ideológica que contaminou do comando às bases, a ponto de forças policiais serem instrumentalizadas politicamente com fins antidemocráticos em atos golpistas.

Após anos de cortejos, investidas e afagos, parte das forças de segurança foi seduzida pelo canto bolsonarista e se rendeu a ponto de manifestar suas preferências políticas abertamente (o que lhe é vedado) e apoiar deliberadamente arroubos autoritários. Tal apontamento é corroborado pela clara identificação de que existe entre parte dos agentes de segurança pública e os invasores que atentaram contra a democracia. Cerca de 40% dos entrevistados pelo survey do FBSP acreditam que as pautas defendidas pelos invasores eram legítimas e não atentam contra a democracia.
Os risco e implicações de tal comprometimento são extensos e evidentes. Os próprios entrevistados reconhecem a gravidade e consequências deste processo, posto que 63% concordam totalmente ou em parte que forças de segurança pública estão contaminadas pelo discurso político e partidário e isso atrapalha suas atividades-fim. Uma polícia politicamente orientada e parcial se torna incapaz de prestar serviços de maneira adequada, pois tenderá a orientar suas ações de acordo com afinidades e desconfianças políticas, podendo em ultima instância se tornar um risco para a própria democracia, como vimos três semanas atrás.

Controlada momentaneamente a crise, o desafio que se impõe agora vai muito além da elucidação e responsabilização dos envolvidos nos ataques de 8 de janeiro, uma vez que evidentemente o problema tem raízes muito mais extensas e profundas. A tarefa hercúlea de reconstrução democrática envolve necessariamente a neutralização das forças antidemocráticas, o que implica obrigatoriamente em um projeto de desradicalização das forças policiais.

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