Revista Brasileira de Segurança Pública 01/11/2023

Prática policial e o not being-at-ease: a importância do investimento em saúde mental na polícia

A sensação de não pertencimento e de estar em constante ameaça faz parte da vida do policial, uma vez que, no desenvolvimento de suas tarefas profissionais, experiencia a lógica da guerra

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Guillherme Bertassoni da Silva*

Doutorando e mestre em Psicologia pela UFPR. Perito Oficial Criminal na Polícia Científica do Paraná

Raíssa Miranda da Cunha Vargas

Mestranda em Psicologia Forense na Universidade Tuiuti do Paraná. Psicóloga pela PUCPR

Adriano Furtado Holanda

Professor Associado do Departamento de Psicologia da UFPR. Doutor em Psicologia pela PUC-Campinas

O impacto da vida laboral na saúde mental das pessoas se evidencia como um campo de estudos crescente. O trabalho policial é uma das profissões mais estressantes da atualidade. A prática policial demanda um certo posicionamento pessoal e a abertura para vestir e desvestir dessa investidura. As pessoas que adentram essa profissão não “são” policiais, ainda que a força do hábito – bem como do regramento institucional – obrigue-as a acreditar nisso. Existe um conceito amplamente difundido entre os policiais de que o profissional “é policial o tempo todo”. Através dessas considerações iniciais, pretende-se vincular a prática policial com o conceito not being-at-ease. Esse conceito indica a forma de manifestação pessoal em que o indivíduo “não se sente à vontade” nas conformações que ocupa no mundo, conforme os apontamentos de Ortega (2016a; 2016b).

A segurança pública é dever do Estado definido na Constituição Federal de 1988 e de responsabilidade das Unidades da Federação (estados e Distrito Federal). O policiamento é dividido entre ostensivo, investigativo e pericial, definidos no art. 144 da CF. Em cada uma dessas instituições, o servidor é policial. Ainda que existam diferenças na atuação de cada uma dessas instituições, há aproximações. Todas as instâncias possuem porte de arma fornecido pelo Estado. Todos são responsáveis, conforme estatutos próprios, por manter a ordem, ainda que sua atuação de origem não seja aquela da Polícia Militar. Todos podem ser acionados a qualquer momento para participar de operações especiais, mobilizações de busca e apreensão, cumprimento de mandados de segurança e afins. Há, desta maneira, algo que define o profissional policial como uma síntese de características básicas e específicas. Apesar de funções compartimentadas, todos são agentes de segurança pública. Todos são per se policiais. As atividades laborais constituem parte da identidade desse grupo de sujeitos e essa identidade, aqui, pode ser representada pelo ethos do agente da lei. É possível despir-se do uniforme ao final do dia, mas não do peso da responsabilidade e da representatividade deste.

Essa correlação – de dificuldade dos policiais em separar os aspectos pessoal e profissional – tem sido indicada como um foco importante de sofrimento psíquico para esses trabalhadores. O sofrimento psíquico do policial, em comparação com a população em geral, é desproporcionalmente mais elevado, conforme observado em Minayo, Assis e Oliveira (2011). Wagner et al. (2020) evidenciam que indivíduos com maior tempo de atuação na carreira de segurança pública apresentam graus superiores de sofrimento em geral. Além disso, Castro, Rocha e Cruz (2019) classificam o trabalho policial como a segunda função mais estressora e a terceira ocupação a gerar mais sintomas físicos e psiquiátricos relacionados ao trabalho, sendo os mais relatados: síndrome de burnout, depressão, ansiedade, transtornos de estresse, dependência química, dificuldade nos relacionamentos interpessoais e comportamentos suicidas. Machado e Rocha (2015) destacam ainda a relação íntima da atividade laboral desse profissional, que ocorre, normalmente, em ambientes de conflito, com o estresse, levando ao esgotamento do indivíduo e da sua qualidade de vida. A saúde do profissional é prejudicada tanto pela operacionalidade do trabalho quanto por questões organizacionais.

Estudo de Miranda e Guimarães (2016) indica que a proporção de suicídio é quatro vezes maior entre policiais do que na população em geral. No ano de 2019, a taxa de suicídio entre esses profissionais, registrada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020), ainda era significativamente maior do que na população em geral, de forma que naquele ano morreram mais policiais por suicídio do que em confronto em serviço. Esses dados apontam para um tipo de trabalho (e de trabalhadores) mais vulnerável para questões ligadas ao sofrimento psíquico agudo e grave, com consequências devastadoras. A alta taxa de suicídio da categoria não é aleatória, mas sim “o retrato de uma realidade perversa mantida por políticas públicas de segurança que tratam seus agentes principais como torniquetes de um sistema falido” (FBSP, 2019, p. 49).

A noção de not being-at-ease

O conceito de not being-at-ease aparece pela primeira vez na obra de Mariana Ortega (2016a) como um contraponto ao conceito heiddegeriano de Unheimlich, algo como um “eu (self) estranho”, um “não estar no mundo”, ou seja, um humor que revela as diferentes possibilidades de estar no mundo e aspectos individuais de si mesmo. Em seu texto, Ortega (ibid.) aponta para um tipo de “não estar à vontade” no mundo como uma sensação “na carne”. Ortega (2016a) explicita que, enquanto algumas pessoas podem se encontrar em situação de não estarem à vontade ocasionalmente, essa sensação se dá de forma continuada. Há uma ansiedade constante, um tipo de estado de alerta que nunca se desfaz: como um estado de angústia permanente que tem finalidade de defesa a qualquer momento.

Entendemos que existem possibilidades de leitura que entrelaçam as sensações percebidas pelo policial em sua atuação profissional e sua vida pessoal com os conceitos acima apontados. A descrição de um tipo específico de sofrimento que Ortega traz em seu texto pode ser verificada, pelos exemplos trazidos da atuação policial, na constante vivência de angústia e estado de alerta desses profissionais. A sensação de não pertencimento e de estar em constante ameaça faz parte da vida do policial, uma vez que no desenvolvimento de suas tarefas profissionais experienciam a lógica da guerra – um exemplo disso são as políticas oficiais de enfrentamento à drogadição (“Guerra às Drogas”), tratando os sujeitos periféricos, negros, pobres, pessoas em situações variadas de vulnerabilidade como potenciais inimigos prontos a agirem contra a integridade física do policial.

Estratégias de enfrentamento

A Lei Nº 13.675 de 2018 prevê no art. 42 o Programa Nacional de Qualidade de Vida para Profissionais de Segurança Pública (Pró-Vida), que tem como objetivo: “elaborar, implementar, apoiar, monitorar e avaliar, entre outros, os projetos de programas de atenção psicossocial e de saúde no trabalho dos profissionais de segurança pública e defesa social” (BRASIL, 2018). Em conjunto a Portaria Nº 483, de 9 de novembro de 2021, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, reforça o incentivo a projetos e programas com o foco na valorização dos profissionais de segurança pública, onde estão previstas ações financiáveis referentes à valorização da qualidade de vida dos profissionais, entre elas: atenção e acompanhamento biopsicossocial, atenção para situações de estresse e risco, vitimização e suicídio.

Apenas recentemente foram divulgados em diversos estados programas que têm como objetivo oferecer apoio psicossocial aos profissionais de segurança pública. A implantação desse trabalho é algo positivo e pode ter um direcionamento adequado. Para um programa ser formatado de maneira a respeitar as especificidades desse público, ele deve ter um marco de enfrentamento das questões mais basais, tomando-se como modelo a estrutura de atenção à saúde prevista no Sistema Único de Saúde – SUS. Esse modelo pressupõe um atendimento escalonado em complexidade, dando ênfase à promoção de saúde como ação primária (Lei Nº 8.080, 1990). Dentro da organização do SUS está previsto no art. 5º, inciso III, que é objetivo do sistema “a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas” (BRASIL, 1990).

Dentro dessa proposta, a atuação de um programa de atenção ao servidor da segurança pública deve estar pautada primeiramente na prevenção. Compreende-se como prevenção ações de promoção de saúde, visando (idealmente) ao não surgimento de alterações comportamentais derivadas da atuação profissional.

Pesquisas de avaliação e intervenção, como a proposta por Silveira (2020), demonstram resultados positivos e significativos da efetividade de um programa de intervenção na fase de pós-teste, apontando para uma diminuição significativa dos níveis de Afetos Negativos (como solidão, tristeza, irritação e preocupação) e um aumento dos Afetos Positivos (interpretações positivas das relações sociais, contribuição para bem-estar físico e aumento da resiliência diante de eventos estressores), e Satisfação com a vida do grupo experimental; assim como também ampliaram a percepção desse grupo de Suporte Social e Emocional. Machado e Rocha (2015), reforçam a necessidade de projetos no nível de intervenção organizacional, de prevenção, treinamentos de habilidades sociais e estímulo à manutenção da saúde física e mental, e enfatizam a necessidade de esclarecimento sobre os processos de psicoterapia com o objetivo de obter maior adesão desses profissionais, em consonância com Silveira (2020). Essa autora indica que a intervenção realizada junto aos profissionais de segurança pública contribui para que estes percebam a necessidade de receber apoio emocional, característica vital para uma carreira que expõe com frequência o servidor a situações estressoras e de risco iminente e constante de morte.

Também é importante levar em consideração o resultado de pesquisas como a de Castro, Rocha e Cruz (2019), que trazem alguns aspectos iniciais a serem considerados para o enfrentamento da problemática: é cada vez mais emergente a mudança do foco no individual para o âmbito coletivo, objetivando estratégias de reestruturação e reorganização das instituições policiais. Dessa forma, são indicados programas institucionais de prevenção da saúde mental no trabalho, promovendo estratégias de controle e prevenção, reduzindo o absenteísmo e a valorização do suporte social. Também são indicadas a assistência psicológica permanente, como atividade institucional, e as intervenções em grupo, instrumento importante para o enfrentamento de questões oriundas da violência e do cotidiano policial, assim como para a recuperação da autoestima. Ao se pensar no âmbito coletivo, também é proposta a flexibilização das organizações policiais (ibid.).

Referências bibliográficas
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* Artigo completo disponível na Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 17, n. 2 (2023)

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