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Pós-pandemia e ano eleitoral: mais uma vez precisamos falar de sistema penitenciário

É fundamental enfrentar essa ausência imposta, sob pena de reproduzirmos o erro histórico e o “faz de conta” de tentar reformar essa instituição cuja essência é imutável e, assim, perpetuar a tragédia que representa

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Maria Palma Wolff

Doutora em Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais e membro do Labgepen

Sabemos o quanto a pandemia e suas medidas de controle geraram impactos em todos os aspectos da vida social. No âmbito do sistema prisional, ocorreu o aprofundamento de algo que lhe é inerente: seu isolamento, insulamento e distanciamento do “mundo da vida”. A limitação das visitas de familiares, de advogados e de qualquer inserção na sociedade civil reforçou os muros e o que deve ficar por detrás deles .

Mas, no momento, a pandemia se enfraquece e entramos em um ano eleitoral com esperanças de mudanças políticas; assim, na retomada da vida, temos urgência de falar seriamente sobre a política penitenciária no Brasil, enfrentar essa ausência imposta, sob pena de reproduzirmos o erro histórico e o “faz de conta” de tentar reformar essa instituição cuja essência é imutável e, assim, perpetuar a tragédia que representa.

As expressões dessa realidade estão calcadas em três determinações que se situam ao mesmo tempo numa linha histórica e sobrepostas no presente, compondo a atual conjuntura brasileira e, consequentemente, o sistema prisional. São elas: 1) a vinculação histórica do Estado aos interesses de classe, que, numa perspectiva colonialista, escravista e patriarcal orientou o sistema penal e a execução das penas privativas de liberdade. Tal aspecto é reeditado cotidianamente, o que adquire especial expressão na América Latina desde a imposição da política estadunidense de guerra às drogas; 2) o neoliberalismo, que impõe limites para a participação do Estado na prestação de serviços, com especial repercussão no mundo do trabalho e nas condições cada vez mais precárias e acesso mais seletivo ao emprego; nas políticas sociais, esse modelo impõe a retirada de direitos historicamente conquistados, a ampliação das desigualdades e também emoldura e constitui nossas subjetividades a partir de uma lógica individualista e competitiva que termina por naturalizar procedimentos e contextos políticos excludentes. 3) por fim, o encontro destes dois vetores com o governo Bolsonaro: seu aparente vácuo de planejamento por um lado possibilita a privatização não só do Estado, mas também a destruição da nação, de suas riquezas naturais e de sua cultura. Nos deparamos cotidianamente com a imposição de lógicas discriminatórias que tentam esmagar qualquer perspectiva humanista, comunitária e solidária na sociedade.  É a necropolítica, que atualiza a lógica colonial e pode ser vista nas posições frente à pandemia e também nos indicadores da segurança pública e nos diferentes relatos sobre a vida na prisão.

Neste contexto estão os direitos sociais, cuja consolidação, a partir da Constituição de 1988, se deu na contramão e no enfrentamento das políticas neoliberais. Muitas políticas sociais foram forjadas pelo ativismo de usuários, de trabalhadores e da sociedade civil que, a despeito de interdições, avançaram na regulamentação – implantação e/ou ampliação – dos dispositivos constitucionais. Avanços nos campos da assistência e da previdência social da saúde, da saúde mental inseriram, a despeito de muitos limites, também a população prisional e suas famílias como usuárias destas políticas e detentoras de direitos. A Política de Saúde Prisional, a extensão da reforma psiquiátrica aos hospitais de custódia e tratamento, facilitando a desinternação de dezenas de pessoas institucionalizadas e o atendimento de inúmeras famílias e de pessoas egressas pelo Sistema Único de Assistência Social, são exemplos da relação dos direitos sociais com o campo penitenciário.

No entanto, especialmente desde 2016, com a Emenda Constitucional nº 95, a redução dos investimentos públicos tem tornado as políticas sociais cada vez mais focalizadas e, principalmente, descoladas de uma perspectiva de construção de direitos. O impacto desse processo é inconteste, como se pode observar pelo retrocesso nos índices da desigualdade e no avanço da pobreza no país. Da mesma forma, os indicadores do perfil da população carcerária são também expressões da questão social, a qual é reforçada pela própria inserção no sistema de justiça criminal e pela vivência na prisão. Ali estão marcadas ainda questões raciais e de gênero, assim como outras condições de indígenas, imigrantes, pessoas com deficiências que impactam nas condições de cumprimento da pena, na vida das famílias e nas (im)possibilidades que se colocam na saída da prisão.  Essas “dimensões superpostas de exclusão” são agravadas, tanto pela “diminuição do Estado” no âmbito das políticas sociais como pela naturalização das infrações perpetradas pelo próprio Estado no acirramento das políticas repressivas, tão caras ao atual governo.

Há, portanto, uma intersecção entre as expressões da questão social expostas, a restrição das politicas sociais e a fragilidade dos direitos civis e políticos, numa perpetuação dos históricos problemas do sistema penal, entre os quais a presença de tortura e de tratamentos degradantes e inumanos. Pode-se dizer que existe uma articulação de ferramentas da penalidade medieval e dos castigos corporais, que se somaram ao disciplinamento imposto à população pobre no contexto da organização da sociedade capitalista e que agora se atualizam para proceder a neutralização e/ou a eliminação dos consumidores falhos e dos descartáveis do mundo neoliberal.

A resiliência dessa instituição, que, além de todas as comprovações de sua ineficácia e negatividade, faz qualquer reflexão sobre si parecer repetitiva, é também a persistência das desigualdades no país que, na pandemia, ficaram tão expostas e agravadas. Por isto, no clamor de Frantz Fanon: “Ó meu corpo, faz sempre de mim um homem que questione”  vemos a necessidade do enfrentamento radical destas condições de incivilidade postas em torno da prisão; expor suas raízes e determinações, reconhecer sua destrutividade e capacidade de interdição futura, é compromisso necessário para projetar qualquer possibilidade civilizatória pós-eleições deste 2022.

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