Por que o combate ao tráfico de armas de fogo deve ser a prioridade do governo federal no Brasil
Historicamente, os governos estaduais têm focado no combate ao tráfico de drogas, enquanto o tráfico de armas recebe atenção marginal. O governo federal, que deveria liderar uma abordagem integrada e coordenada, frequentemente prioriza outras questões de segurança pública
Roberto Uchôa
Policial federal e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
O Brasil enfrenta uma das maiores crises de violência armada do mundo, com números alarmantes de homicídios e crimes relacionados ao uso de armas de fogo. Anualmente, mais de 30 mil pessoas perdem a vida devido a esse tipo de armamento, o que representa cerca de 70% de todos os homicídios no país. Apesar dessa realidade, o combate ao tráfico de armas não tem recebido a atenção necessária no debate sobre segurança pública. O governo federal, responsável por lidar com questões de alcance nacional e internacional, reluta em assumir plenamente seu papel nesse enfrentamento.
As armas de fogo vão além de meros instrumentos de violência: tornaram-se ferramentas de poder nas mãos de organizações criminosas. De acordo com um estudo da Secretaria Nacional de Políticas Penais, existem mais de 80 dessas organizações no Brasil, sendo que a maioria utiliza armamentos para consolidar o controle de territórios, transformando comunidades inteiras em verdadeiras zonas de guerra. Armadas com equipamentos potentes, como rifles de assalto, essas facções impõem suas próprias regras, dificultam a atuação das forças de segurança e submetem os moradores a uma rotina de medo e violência. Esse controle armado não só perpetua o ciclo de exclusão social como também facilita outras atividades ilícitas, como o tráfico de drogas, extorsões e sequestros. Enquanto essas facções permanecerem fortemente armadas, qualquer tentativa de retomada dos territórios será ineficaz e altamente arriscada, evidenciando a necessidade de ações sistemáticas e urgentes contra o tráfico de armas.
Grande parte desse arsenal entra no Brasil por fronteiras mal fiscalizadas. A proximidade com países como Paraguai, Bolívia, Colômbia e Venezuela, somada a um sistema de monitoramento ineficiente, torna as fronteiras terrestres, fluviais e aéreas rotas fáceis para o tráfico de armas. Rifles, pistolas e armamentos militares de alta capacidade são frequentemente contrabandeados pelos mesmos canais utilizados no tráfico de drogas. Essas armas, muitas vezes adquiridas legalmente no exterior, acabam nas mãos de criminosos devido a falhas de controle, corrupção e por conta da atuação de redes internacionais de contrabando. A ausência de investimentos em tecnologias modernas, como drones, scanners e sistemas integrados de monitoramento, assim como a ausência de grupos especializados em investigações sobre tráfico de armas, agrava a situação, limitando a capacidade do Estado de interromper o fluxo de armas ilegais para o território nacional.
Um exemplo claro dessa problemática é o estudo realizado por Matt Schroeder, pesquisador do Small Arms Survey, que revelou um aumento expressivo nas apreensões de armas de fogo traficadas dos Estados Unidos para o Caribe e a América Latina entre 2016 e 2023. A pesquisa, baseada em dados da US Customs and Border Protection (CBP), mostrou que as apreensões se concentram em áreas específicas, com destaque para o sul da Flórida, um ponto crítico para o tráfico na região. O estudo também apontou diferenças entre o tráfico destinado ao Caribe e à América Latina, incluindo o tipo de armas apreendidas, os modos de transporte e os locais de interceptação, evidenciando uma maior prevalência de rifles semiautomáticos e carregadores de alta capacidade na América do Sul, frequentemente transportados por rotas aéreas e marítimas. Embora o aumento das apreensões possa indicar tanto o crescimento do tráfico quanto melhorias nos processos de fiscalização, os dados revelam uma crescente demanda por armas na região, reforçando a necessidade de uma colaboração internacional mais efetiva para investigar e enfrentar essas tendências alarmantes.
Outro aspecto preocupante é o desvio de armas e munições dos arsenais públicos, evidenciando como as próprias forças de segurança, responsáveis por proteger a população, podem contribuir involuntariamente para o agravamento do problema. Investigações indicam que muitas armas usadas em crimes já estiveram registradas em órgãos de segurança pública, resultado de falhas nos controles internos, auditorias ineficientes e sistemas ultrapassados de rastreamento. Casos de corrupção entre agentes agravam ainda mais a situação, transferindo armas destinadas à proteção dos cidadãos para as mãos de criminosos. Além disso, a gestão inadequada de estoques de munição permite que cartuchos desapareçam ou sejam encontrados em cenas de crimes, expondo a fragilidade das políticas de armazenamento e distribuição.
O mais grave, porém, é a falta de conhecimento ou ação por parte de algumas instituições em relação à extensão do problema. Quando questionadas, muitas afirmam que a tabulação de dados sobre armas extraviadas, furtadas ou roubadas de seus arsenais demandaria esforços extraordinários, impossibilitando sua realização. Outras alegam que divulgar esses dados poderia comprometer a segurança pública, pois exporia a fragilidade do controle institucional sobre seus arsenais. No entanto, o próprio “sumiço” de armas e munições já representa, por si só, uma grave ameaça à segurança.
O problema das armas no Brasil não se limita ao contrabando ou ao desvio de arsenais públicos. Mesmo armamentos adquiridos legalmente, por cidadãos ou empresas, frequentemente acabam nas mãos de criminosos por meio de roubos, furtos ou esquemas com “laranjas”, que compram armas legalmente para revendê-las de forma clandestina. A flexibilização das leis de posse e porte de armas nos últimos anos agravou essa dinâmica, facilitando o acesso de criminosos a armamentos por vias legais. Além disso, o mercado secundário, alimentado por armas roubadas ou furtadas, reforça diretamente o poder de fogo de facções criminosas. Essa situação exige políticas mais rigorosas de controle, incluindo rastreamento eficiente de armas e munições, além de sanções severas para aqueles que negligenciam a responsabilidade no armazenamento de armamentos.
Embora o atual governo federal tenha tomado medidas para endurecer o controle sobre a circulação e comercialização de armas no mercado legal, ainda há muito a ser feito. Apesar da insistência de parte do Congresso Nacional em fragilizar políticas mais restritivas, apesar de todas as evidências contrárias, é essencial que o governo continue a defender o controle de armas, aprimorar a estrutura de fiscalização e implementar um programa robusto de recompra de armamentos. Não basta impedir a entrada de novas armas em circulação; é fundamental retirar das ruas aquelas que já alimentam a violência.
Apesar de sua relevância para a segurança pública, o tráfico de armas segue como uma prioridade secundária no Brasil. Historicamente, os governos estaduais têm focado no combate ao tráfico de drogas, enquanto o tráfico de armas recebe atenção marginal. Por sua vez, o governo federal, que deveria liderar uma abordagem integrada e coordenada, frequentemente prioriza outras questões de segurança pública. A falta de uma política nacional estruturada reflete essa negligência. Ações isoladas e descoordenadas entre estados e órgãos federais comprometem a eficácia de iniciativas de combate ao tráfico de armas, perpetuando a circulação de armamentos ilegais. Além disso, a ausência de integração de dados, os investimentos insuficientes em investigação e a falta de estratégias conjuntas demonstram que o combate a esse problema crucial ainda está longe de ocupar o espaço necessário na agenda governamental.
Enquanto isso, o número de rifles de assalto ou fuzis apreendidos no Brasil continua a crescer de forma preocupante. Dados do SINESP (Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública), vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, indicam um aumento de mais de 200% nas apreensões desse tipo de arma entre 2015 e 2024. O ano de 2023 registrou o maior número histórico, com 1.358 fuzis apreendidos, marca que já foi superada em 2024, considerando apenas os dados disponíveis até outubro. Nos últimos dez anos, o Rio de Janeiro liderou as apreensões, com mais de 4.500 fuzis confiscados, seguido por São Paulo, com pouco mais de 1.800.
Priorizar o combate ao tráfico de armas pode trazer impactos positivos significativos para a segurança pública e a qualidade de vida no Brasil. A redução na disponibilidade de armas para criminosos resultaria diretamente na diminuição de homicídios e ferimentos, além de aliviar a sobrecarga no sistema de saúde pública. O desarmamento de organizações criminosas enfraqueceria seu domínio territorial, permitindo que o Estado recuperasse comunidades e as devolvesse aos seus moradores. Isso criaria condições para o desenvolvimento econômico local, a melhoria da qualidade de vida e o fortalecimento da cidadania.
Ademais, a redução da capacidade bélica de facções criminosas tornaria operações policiais menos arriscadas e mais eficazes. Com a escassez de armas, o crime armado se tornaria menos atrativo e letal, abrindo caminho para uma transformação a longo prazo na dinâmica da criminalidade. Diante desse cenário, é imperativo que o governo federal assuma a liderança no combate ao tráfico de armas de fogo, implementando estratégias que englobem desde o controle rigoroso de fronteiras até a fiscalização de arsenais e a regulamentação mais restritiva de armamentos adquiridos legalmente. Com uma abordagem estratégica e determinada, será possível reverter o atual quadro de violência e construir um futuro mais seguro para todos os brasileiros.