Múltiplas Vozes 16/11/2023

O povo negro, Direitos Humanos e segurança cidadã

O ensino de Direitos Humanos nos cursos de formação policial é elemento sine qua non para romper a reprodução do racismo estrutural

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Paulo Tiego Gomes de Oliveira

Sociólogo e Policial Militar/MG. Doutor em Educação pela UFMG

Existem situações que envolvem grupos cuja atenção estatal tem sido marginalizada, denotando certa injustiça social, e que acabam sendo submetidos e subjugados pela própria sociedade ao longo da história: é o caso, dentre muitos outros grupos, da população negra.

O fato é que 77% das vítimas de homicídios no Brasil são pessoas negras. O risco de uma pessoa negra ser assassinada no país é 2,6 vezes maior do que o de uma pessoa não negra. As mulheres negras representaram, ainda, 66% do total de mulheres assassinadas no Brasil, “com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 4,1, em comparação com a taxa de 2,5 para mulheres não negras”, conforme o Atlas da Violência (Cerqueira, et al, 2021, p. 49), reforçando o espectro da violência e demarcando a desigualdade social. O fenômeno que impregna e demarca a população negra é tão real que também são vítimas do cenário violento brasileiro os policiais negros, que são as maiores vítimas dos homicídios cometidos contra policiais, perfazendo 67,7% dos 190 policiais assassinados em 2021, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 (Lima e Bueno, 2022).

Entre os anos de 2009 e 2019 houve 50.056 mulheres vítimas de homicídios no Brasil. Ao se focar apenas o ano de 2019, identificam-se 3.737. Desse contingente, 66% eram constituídos por mulheres negras, segundo o Atlas da Violência (2021).

Pelos dados apresentados e por tudo o que a mídia veicula, volta e meia percebemos que o que Bobbio (2002) diz sobre o preconceito encontra esteio na sociedade brasileira, vez que práticas discriminatórias contra o povo negro figuram quase que como uma doutrina que perpassa gerações. Há uma transmissão pela tradição, pelo costume ou a partir de uma (suposta) autoridade inquestionável. Logo, o racismo nada mais é que o resultado de uma prática que une preconceito e ignorância. Sendo, então, uma construção social que se diferencia da realidade biológica, mesmo porque a ultrapassa, vez que o caráter social não se desloca dos indivíduos que são “demarcados” pela sua condição fenotípica. Este é o motivo pelo qual seria um equívoco pensarmos o racismo como uma conduta individual, pois é um produto da história; portanto, social.

Relações e interações sociais reproduzem o racismo, ainda que o grupo privilegiado não se veja como racista. São expressões comuns no cotidiano brasileiro: “não sou preconceituoso, eu tenho até amigos negros”; “mas meus avós eram negros”, “você é negra, mas é bonita”; “hoje é sua vez de fazer serviço de preto”; “neguinho é muito folgado”; “não sou tuas nega”; “por que não existe Dia da Consciência Branca?”; “você é um negro de alma branca”. Esses nada mais são que instrumentos sociais que manifestam mecanismos estratégicos que reproduzem o racismo e estigmatizam indivíduos. Por isso mesmo também estão presentes nas instituições e organismos públicos e privados, sejam eles explícitos ou não.

É nesse diapasão que emergem as questões étnico-raciais na segurança pública, especialmente quanto à formação policial com respeito aos Direitos Humanos para com toda a sociedade, mas, de forma mais detida, com a população negra no Brasil. Para tanto, é preciso que a Segurança cidadã seja uma prática diária, como que um “cartão-programa” bem sedimentado, pois nela reside a possibilidade de se garantirem os direitos do cidadão sem, contudo, perder o foco da prevenção e mesmo da reação (quando necessária), tendo a comunidade e o Estado como gestores democráticos das políticas públicas de segurança.

A segurança cidadã tem em seu cerne o respeito às diferenças e a diversidade. Contudo, parece estar arraigado nas polícias brasileiras o sentimento de que Direitos Humanos “atrapalham o serviço policial e defendem bandido”. Muito pelo contrário: sendo uma instituição criada por lei e por ela parametrizadas suas funções e embasadas suas ações, aos policiais cabe respeitar os Direitos Humanos no desempenho de suas atividades profissionais, mesmo porque é isso que garante a legalidade de suas ações. Em outras palavras, considerando que é função da polícia a proteção dos Direitos Humanos, o requisito de respeito a esses direitos afeta diretamente o modo como a polícia desempenha todas as suas funções.

Em pesquisa realizada em MG, com 240 questionários aplicados aos policiais militares dos cursos de formação policial, obtendo 232 respostas, ou 97% de retorno, 75% dos policiais reconhecem que é preciso ampliar a discussão sobre o racismo; 38% disseram ser preciso ampliar as disciplinas que abordem a questão racial nos cursos de formação policial; 21% entendem que realizar parcerias institucionais com movimentos negros e órgãos de Direitos humanos seria fundamental; 18% entendem que é preciso aumentar a carga horária do conteúdo de Direitos Humanos, especialmente abordando o tema da discriminação e preconceito racial (Oliveira, 2021).

Discorrer sobre o tema com foco na população negra é um desafio, considerando a  conjuntura brasileira, determinada, em boa parte, pela polarização entre os “de direita ou os de esquerda”; os católicos ou os protestantes; os hétero ou os homossexuais; ou mesmo da dicotomia racial de negros de um lado e brancos de outro. Fazendo jus ao conceito de backlash, ou seja, de movimentos neoconservadores que buscam reivindicar direitos de grupos politicamente hegemônicos, por, supostamente, estarem “perdendo espaço” pela conquista, ou melhor, pela reparação de direitos de grupos estigmatizados (Payne; Santos, 2020). Assim, esse panorama se renova continuamente, perpassando gerações, dilacerando a democracia e aviltando o ser humano em todas as dimensões. Daí que pouco se questiona intelectualmente e com senso crítico, minando práticas efetivas e ações concretas que permitam rupturas em uma sociedade na qual os sujeitos estão envoltos na/pela violência. O resultado é uma constância de uns contra os outros e contra si mesmos.

Uma factível solução seria partir do princípio de que Direitos Humanos não são pauta apenas de quem estuda, pesquisa ou debate o tema. Pensar assim é um erro gravoso. Devem-se alterar as matrizes curriculares de cursos de formação policial, com perspectiva baseada na Educação técnico-profissional, fazer com que as instruções de rotina sejam ministradas tanto em cursos de reciclagem e atualização quanto nas instruções pré-turno, atualizar e revisar de forma contumaz cadernos de instrução e doutrina operacional, de modo que a teoria se torne a prática alinhada à realidade do cotidiano policial, pois só assim haverá mudança na cultura dentro das instituições policiais. O ensino de Direitos Humanos nos cursos de formação policial é elemento sine qua non para romper a reprodução do racismo estrutural, visto que o policial e qualquer outro agente da segurança pública são entes da mesma sociedade, e lidam com ela diariamente.

 

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