Por que a operação policial nos complexos do Alemão e da Penha, com 121 mortes, não será a mais letal da história do Rio?
A espetacularização de operações – a exemplo das realizadas no Jacarezinho, no Alemão e na Penha – serve mais como instrumento político do que como medida voltada à desarticulação das redes do crime organizado
Alexandre Pereira da Rocha
Doutor em Ciências Sociais. Policial civil no Distrito Federal. Associado do FBSP. Professor substituto no IPOL/UnB
A operação policial nos complexos do Alemão e da Penha, realizada em 28 de outubro, tornou-se a mais letal da história do Brasil, com 121 mortes confirmadas até a conclusão deste artigo. Mas o número parece não ter incomodado o governador Cláudio Castro (PL), que classificou a intervenção como bem-sucedida[i]. Em sua avaliação, apenas os quatro servidores policiais mortos seriam vítimas; os demais indivíduos, por estarem na condição de suspeitos, não mereceriam tal reconhecimento. Com essa régua moral, o mandatário carioca define quem pode ser vítima nas tragédias do Rio. Assim, pretende se isentar da responsabilização de justificar a quantidade de mortes.
Se, conforme o próprio governador, a megaoperação foi previamente planejada, não é absurdo cogitar que o número de suspeitos mortos não foi acidental, mas parte de uma estratégia deliberada. Essa percepção é reforçada pela fala do secretário de Segurança Pública, Victor Santos, para quem a letalidade já era esperada e o dano colateral foi “muito pequeno”[ii]. Nesse raciocínio, a morte de dezenas de pessoas, com rótulos de bandidos, passa a integrar o balanço de produtividade da operação, ao lado de prisões e apreensões de armas e drogas. Assim, no discurso de Cláudio Castro, matar suspeitos é sinal de eficiência e não um desvio de finalidade das ações de segurança pública.
Em 2021, uma operação policial no Jacarezinho, também na periferia do Rio de Janeiro, resultou em 28 mortes – um policial civil e 27 suspeitos. Até então era a ação mais letal do estado. Na ocasião, escrevi para esta Fonte Segura o artigo: “Por que a operação policial no Jacarezinho não será a mais letal da história do Rio?”[iii]. Infelizmente, a minha previsão se confirmou. A recente operação no Alemão e na Penha praticamente quadruplicou o número de mortes. À exceção da ADPF das favelas, na qual o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu regramentos para operações no Rio de Janeiro, pouco tem sido feito para revisar as estruturas, mentalidades e práticas das forças de segurança. Diante disso, operações policiais, baseadas na ideologia da guerra, continuam sendo exceções que confirmam uma regra: o enfrentamento letal à criminalidade é visto como sinônimo de segurança pública efetiva.
Por que acreditei que a operação no Jacarezinho não seria a mais letal? Naquele momento, afirmei que: “os arranjos que justificam a letalidade policial no estado se mantêm inabalados (…). Nessa lógica, a sangrenta operação no Jacarezinho não foi evento atípico no Rio de Janeiro, porém mais uma evidência de que aí a letalidade é estratégia de policiamento, bem como arma política de alguns poderosos”. Mantenho a opinião. E o faço não por convicção pessoal, mas porque pouco se fez para romper com o repertório que transforma operações policiais em espetáculos, nas quais mortes de criminosos são apresentadas como trunfos na gestão da segurança pública. O resultado sangrento no Alemão e na Penha apenas confirma a prevalência dessa lógica.
O problema é que, enquanto corpos de inocentes, policiais e bandidos são contabilizados nessa guerra contra a criminalidade, as engrenagens do mercado ilícito (drogas, armas, combustíveis) e o poderio das facções permanecem atuantes. Da mesma forma, permanecem intactas as conexões complexas entre as economias ilegais e legais, bem como as interfaces entre o crime organizado e determinados setores do poder público. Daí decorre que a espetacularização de operações – a exemplo das realizadas no Jacarezinho, no Alemão e na Penha – acaba servindo mais como instrumento político do que como medida efetiva de segurança pública voltada à desarticulação das redes do crime organizado.
Apesar da letalidade da operação nos complexos do Alemão e da Penha, não há sinais de mudanças por parte do atual governo fluminense. Enquanto os corpos ainda eram identificados e devolvidos às famílias, o governador Cláudio Castro foi exaltado por outros dirigentes alinhados à lógica da necropolítica[iv], entoou cânticos fervorosos em evento religioso realizado no Palácio Guanabara[v] e testemunhou adesão popular à sua política violenta, com 57% dos moradores do Rio apoiando a operação sangrenta[vi]. Enfim, observa-se uma banalização da morte no âmbito das ações de segurança pública. Isso indica que a operação nos complexos do Alemão e da Penha não será a mais letal da história do Rio de Janeiro. É isso?

