Múltiplas Vozes 17/12/2025

Por que a fórmula para superar a violência e a prisão não funciona no Brasil

É necessário ouvir quem vive nas vielas, nos becos e nos morros, quem sofre com a prisão e com a falta do mínimo existencial

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João Marcos Buch

Desembargador e Pesquisador do LabGEPEN

A segurança pública voltou a ocupar o centro das discussões políticas no Brasil. Os confrontos da polícia em comunidades periféricas e favelas, com prisões espetaculosas e mortes violentas, fazem a sociedade cobrar respostas imediatas das autoridades. Apesar das promessas, as ações do Estado continuam revelando contradições profundas. De um lado, reforça-se a ideia de que é preciso expandir o aparato repressivo e prender; de outro, multiplicam-se as famílias que buscam justiça diante de intervenções policiais que terminam em prisão e morte. Entre esses extremos, persiste um descompasso que compromete qualquer projeto consistente de superação da violência e do encarceramento.

Nos últimos anos, conforme o noticiário, muitos governos estaduais ampliaram orçamentos para aquisição de armas de alto calibre, muitas vezes importadas, bem como para aumento e construção de unidades prisionais. O discurso é conhecido: só com mais força e prisão será possível enfrentar facções criminosas e tráfico de drogas em expansão. Contudo, esse movimento convive com outra realidade. Em gabinetes do Judiciário, como o meu, chegam mães e pais que perderam seus filhos em operações policiais. Pedem informações sobre as investigações, mas esbarram em negativas ilegais, apesar das garantias constitucionais de acesso. A discrepância entre o investimento em repressão e a ausência de respostas para as vítimas revela a face mais dura do problema: o Estado se arma, mas não escuta.

A contradição também aparece quando observamos episódios que chocam o país. A recente operação nos complexos do Alemão e na Penha, no Rio de Janeiro, deixou mais de 120 mortos. As imagens de familiares carregando corpos da mata para a rua chocaram o mundo e reabriram debates sobre letalidade policial. Ao mesmo tempo, longe dos holofotes, o Observatório de Violência em Florianópolis apresentou um estudo detalhado sobre quem morre na capital catarinense, considerada a mais segura do país. Os dados mostram que a segurança não é distribuída de forma igual: moradores de territórios periféricos, sobretudo jovens negros, concentram as mortes decorrentes de ação policial. O que parece estatística ganha nome, cor e endereço.

Há também um distanciamento entre os compromissos institucionais e a prática cotidiana da justiça criminal. O Conselho Nacional de Justiça lançou o plano Pena Justa, criado após o Supremo Tribunal Federal declarar o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro (ADPF 347). O plano propõe reduzir a superlotação, melhorar a infraestrutura das prisões, garantir acesso à educação e trabalho e fortalecer a reinserção social de egressos. Contudo, na rotina do sistema de justiça criminal, multiplicam-se habeas corpus questionando prisões preventivas decretadas e indeferimentos de medidas alternativas à prisão que muitas vezes poderiam tomar outro desfecho, com menos custos para tantas vidas. A teoria avança, a prática resiste.

Esse conjunto de cenários aponta para a existência de dois Brasis que convivem sem se tocar. Há o Brasil oficial, que responde à violência com mais violência, expande operações e constrói presídios. É o país que administra tragédias, mas pouco investe em preveni-las. E há o Brasil real, formado pelas vítimas históricas da desigualdade: crianças que crescem sem direitos básicos, adolescentes invisibilizados e jovens que, quando não são mortos precocemente, passam a integrar estatísticas de encarceramento. Esses dois Brasis disputam o mesmo território, mas raramente dividem o mesmo diálogo.

Superar a violência exige mais do que equipamentos novos ou operações espetaculares, muito mais do que o encarceramento. Exige reconhecer que as políticas públicas falham quando ignoram o cotidiano das comunidades periféricas e que as prisões se tornaram depósito humano de uma juventude cujo único erro foi nascer do lado de lá da margem. É necessário ouvir quem vive nas vielas, nos becos e nos morros, quem sofre com a prisão e com a falta do mínimo existencial; entender suas dificuldades e a desigualdade que as atravessa. Sem essa escuta ativa, qualquer ação estatal se torna unilateral e reforça o ciclo que deveria combater.

O Brasil enfrenta um caminho longo e urgente. E esse caminho passa, inevitavelmente, pelo encontro entre o Estado e as populações que historicamente foram deixadas à margem. Somente quando esses mundos se aproximarem será possível construir políticas nacionais capazes de desconstruir a cultura do encarceramento em massa e de enfrentar a violência de modo real, humano e eficaz. Até lá, a fórmula continuará a não funcionar — e continuará custando a liberdade; pior, custando vidas.

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