Múltiplas Vozes 15/05/2024

População Migrante: desafios para o sistema de justiça e para a política migratória brasileira

Um dos principais desafios da população migrante diz respeito às dificuldades enfrentadas no sistema de justiça brasileiro. Tal questão dialoga com a ausência de políticas migratórias que impactem as políticas penais e o sistema carcerário

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Gustavo Bernardes

Mestrando em Sociologia PPGSOL/UnB. Integrante do Laboratório de Gestão de Políticas Penais – LabGEPEN/UnB

Entre os dias 7 e 9 de junho de 2024 será realizada a 2ª Conferência Nacional de Migrações, Refugio e Apatridia (COMIGRAR), um evento essencial para abordar as complexidades e os desafios enfrentados por migrantes, refugiados e apátridas no Brasil. Os objetivos principais do evento são aprofundar o debate sobre migrações, refúgio e apatridia, além de propor e discutir diretrizes e recomendações para políticas públicas que beneficiem esses grupos vulneráveis. Além disso, a conferência busca promover a participação social e política dessas populações e fomentar a integração entre entes federativos, organizações da sociedade civil e associações e coletivos que atuam no tema. Diante da proximidade do evento, seria importante abordar um aspecto relevante, que se refere à dificuldade que a população migrante enfrenta no sistema de justiça brasileiro. Quero refletir sobre essas questões neste período pré-conferência para talvez provocar a abordagem do tema durante o evento, que é promovido e organizado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Segundo o relatório do SISDEPEN, o Brasil tinha, em 30 de junho de 2023, 2.316 presos estrangeiros no sistema carcerário nacional, sendo 2.048 do sexo masculino e 268 do feminino. Além disso, há no sistema prisional brasileiro 1.318 presos sem informação sobre a nacionalidade, sendo 1.260 do sexo masculino e 58 do sexo feminino. Apesar do número pequeno de presos migrantes diante de um universo de 644 mil detentos, os desafios institucionais são significativos para o sistema de justiça. A relevância do tema ganhou destaque com a publicação da Resolução CNJ n. 405/2021, que trata especificamente das pessoas migrantes no sistema penal e socioeducativo.  A normativa do Conselho Nacional de Justiça reconhece que a população migrante no sistema prisional brasileiro compõe um grupo particularmente vulnerável dentro de um contexto já marcado por desafios estruturais e sociais significativos.

A imigração na atualidade é um tema complexo que abrange uma série de questões políticas, econômicas, sociais e humanitárias em todo o mundo. No caso do Brasil, o país tem sido historicamente um destino para imigrantes. Temos recebido um número significativo de imigrantes de países como Venezuela, Haiti, Bolívia, Colômbia e outros países da América do Sul, bem como imigrantes de outras partes do mundo, incluindo Síria e países africanos. Segundo o Relatório de Dados Consolidados da Imigração no Brasil 2022[1] do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), entre os anos de 2011 e 2022 o Brasil recebeu cerca de 1,5 milhão de imigrantes. Trata-se de uma população diversa e com diferentes origens geográficas, sociais e culturais, entre outros aspectos. As nacionalidades venezuelana e boliviana foram as que mais solicitaram residência em 2022.

Quanto ao refúgio, o mesmo tem sido objeto de intensos debates e reflexões nas últimas décadas. A necessidade de proteção e acolhimento de pessoas que fogem de perseguições e violações de direitos em seus países de origem é um desafio enfrentado pelas sociedades contemporâneas. Segundo a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), o número de pessoas deslocadas à força em todo o mundo vem crescendo e atingiu em 2022 a expressiva marca de 108,4 milhões de pessoas refugiadas[2]. No Brasil, segundo o OBMigra, entre os anos de 2011 e 2022 348.067 imigrantes solicitaram refúgio no país. Ao final de 2022 existiam 65.840 pessoas refugiadas reconhecidas pelo Brasil. Somente em 2022, ainda segundo o OBMigra, 50.355 mil migrantes solicitaram refúgio no Brasil. No ano de 2022, verificou-se um acréscimo de 21.248 solicitações na comparação com o ano de 2021; a variação positiva foi de cerca de 73,0% em relação ao ano anterior.

Obviamente, esses números crescentes de migrantes e refugiados circulando ou se estabelecendo no país terão um impacto no sistema de justiça e no sistema prisional. Por óbvio, a grande maioria dos migrantes que adentram no país não comete ilegalidades e busca se adequar às normas locais, mas uma parcela dessa população eventualmente irá transgredir alguma norma penal e terá que responder à Justiça e, eventualmente, conhecerá o sistema penal brasileiro.

Os migrantes no sistema prisional brasileiro são predominantemente detidos por delitos relacionados à documentação, como entrada irregular no país ou falsificação de documentos, e infrações associadas ao tráfico de drogas. Este último, em particular, reflete não apenas a posição geográfica do Brasil como rota de tráfico internacional, mas também a falta de oportunidades e a marginalização que muitos migrantes enfrentam, levando-os ao envolvimento com atividades ilícitas como meio de sobrevivência.

No sistema prisional os migrantes enfrentam barreiras linguísticas, culturais e legais que dificultam seu direito à defesa e à representação adequada. A falta de informação sobre seus direitos legais, bem como a escassez de intérpretes e advogados familiarizados com a legislação migratória, são obstáculos significativos. Adicionalmente, a separação de suas famílias e redes de apoio exacerba seu isolamento e dificuldades emocionais. Sabemos que em muitos presídios brasileiros o apoio familiar é fundamental para garantir condições mínimas de sobrevivência dentro da prisão, contudo os migrantes na grande maioria das vezes não podem contar com esse tipo de apoio, o que torna a sua permanência no sistema prisional mais difícil.

Além disso é importante destacar o impacto da separação familiar, a perda de renda e o estigma associado ao encarceramento podem ter efeitos devastadores na vida dos migrantes. Ademais, a presença de migrantes no sistema prisional ressalta questões mais amplas sobre a integração e os direitos humanos, desafiando a sociedade a refletir sobre sua abordagem à migração e inclusão social.

A abordagem à população migrante no sistema de justiça e no sistema prisional requer uma reforma abrangente que vá além das questões de capacidade e infraestrutura prisional. É necessário promover políticas públicas que priorizem a reinserção social, o respeito aos direitos humanos e o acesso à justiça. Isso inclui a implementação de programas de assistência legal especializada, serviços de tradução e interpretação e o desenvolvimento de estratégias de prevenção ao crime que considerem as vulnerabilidades específicas dos migrantes. A Resolução CNJ 405/2021 destaca a necessidade de os juízes atentarem para o acesso a intérpretes e assistência jurídica, independentemente da sua situação legal no país, que o Poder Judiciário realize um monitoramento sobre a situação de detenção dos migrantes, que haja a promoção de informações sobre a vulnerabilidade dos migrantes, que seja garantida a visita consular, que a utilização de presos que dominam idiomas estrangeiros como tradutores seja uma atividade laboral reconhecida para fins de remição e que recebam formação específica, entre outros. A Resolução também enfatiza a importância de garantir que os migrantes tenham acesso aos seus documentos pessoais, como passaportes, vistos, identidades e outros papéis relevantes para sua situação legal no país. Isso é fundamental para a proteção de seus direitos e para a sua participação adequada no processo legal.

Ademais, é fundamental que o Brasil fortaleça suas políticas de migração de maneira a promover a integração social dos migrantes e evitar que acabem em situações que os predisponham ao envolvimento com o sistema de justiça criminal. A adoção de políticas migratórias mais inclusivas e a garantia de direitos básicos podem servir como medidas preventivas eficazes contra o encarceramento desproporcional de migrantes. A título de ilustração, destacamos que, na última pesquisa do perfil socioeconômico e do censo da população em situação de rua em São Paulo, foi demonstrado que, das 31.884 pessoas vivendo em situação de rua, 3,56% são originárias de outros países. Podemos falar também sobre os afegãos que moram dentro do aeroporto de Guarulhos, por exemplo. Essas situações demonstram as dificuldades das políticas migratórias brasileiras, que muitas vezes podem levar essa população para o sistema de justiça criminal.

A questão dos migrantes no sistema prisional brasileiro é complexa e multifacetada, refletindo tanto as falhas no sistema de justiça criminal quanto as políticas de migração do país. Abordá-la requer um esforço conjunto entre governos, sociedade civil e organizações internacionais para garantir que os direitos dos migrantes sejam protegidos e que soluções sustentáveis sejam buscadas. O compromisso com a justiça social, a igualdade de direitos e a inclusão é fundamental para enfrentar esse desafio de maneira eficaz e humana.

[1] https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/Obmigra_2020/OBMIGRA_2023/Dados_Consolidados/dados_consolidados_2022_-_v_19_06.pdf (acessado em 28/11/2023)
[2] https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/#:~:text=108%2C4%20milh%C3%B5es%20de%20pessoas,perturbaram%20gravemente%20a%20ordem%20p%C3%BAblica. (acesso em 26/06/2023)

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