Ponto inicial: fortalecimento de controles administrativos é caminho para enfrentamento a organizações criminosas
É impossível prever de antemão as formas de lavagem de capital que uma organização criminosa pode adotar, contudo é essencial que as informações exigidas e obtidas numa licitação e durante o curso contratual sejam analisadas pela Administração Pública também sob o enfoque da possível utilização do serviço público para lavagem de dinheiro
Danilo Orlando Pugliesi
Promotor de Justiça do Estado de São Paulo. Graduado em Direito pela USP e especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo
A divulgação das recentes denúncias oferecidas pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra sócios de pessoas jurídicas concessionárias do serviço de transporte público do município de São Paulo, se por um lado pode não surpreender quem observa o crescimento da organização criminosa Primeiro Comando da Capital desde sua criação, em 1993, e já compreendia a necessidade que teriam de diversificar seus métodos de lavagem de capital, por outro acende alertas que devem ir além da mera constatação do poderio da organização criminosa.
O primeiro alerta é a vulnerabilidade demonstrada pelo Estado no regime de contratação e fiscalização do serviço. É impossível prever de antemão as formas de lavagem de capital que uma organização criminosa pode adotar, contudo é essencial que as informações exigidas e obtidas numa licitação e durante o curso contratual sejam analisadas pela Administração Pública também sob o enfoque da possível utilização do serviço público para lavagem de dinheiro. É bem verdade que a função precípua da Prefeitura não é investigar crimes, porém também é certo que tal enfoque, de maior perscrutação daquele que está sendo contratado, não interessa apenas à seara criminal, mas sobretudo à preservação do interesse público, ao menos na regularidade e continuidade da prestação de um serviço que impacta sobremaneira o cotidiano da população. Em outras palavras, se se pode alegar que não cabe à Prefeitura investigar o crime de lavagem, não se ousa, porém, duvidar que ao contratante cabe fiscalizar a regularidade do serviço prestado e, ao detectar indícios de qualquer ilicitude, concluir que há, no limite, um risco à prestação do serviço.
A presença de foragidos, de investigados e acusados de integrar organização criminosa no quadro societário, as alterações societárias que implicam aumento substancial do capital societário visando cumprir requisitos licitatórios, a falta de lastro da capacidade financeiras dos sócios, conforme as informações noticiadas, podem ser vistos como tais indícios e a Administração Pública, ao analisar as informações das pessoas jurídicas que participam de uma licitação, pode e deve detectar o risco.
O segundo alerta é a importância à prevenção da lavagem de capitais e ao enfrentamento das organizações criminosas, do controle e dos comunicados feitos pelas Juntas Comerciais à Unidade de Inteligência Financeira (UIF). Conforme noticiado, parte relevante do esquema de lavagem perpetrado pela organização criminosa se deu através de sucessivas alterações societárias, sucessões empresariais, aumento e integralização do capital social, todas operações registradas junto à Junta Comercial. É importante destacar o artigo 3° da Instrução Normativa 76/2020 do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (DREI), que regulamenta a Lei 9613/1998 no tocante aos procedimentos e controles a serem adotados pelas Juntas Comerciais para cumprimento do dever de comunicação das operações suspeitas à UIF: “Art. 3º As solicitações de arquivamentos que se enquadrem nas situações listadas a seguir devem ser monitoradas, selecionadas e analisadas com especial atenção pelas Juntas Comerciais e, se consideradas suspeitas, comunicadas ao COAF: I – constituição de mais de uma pessoa jurídica, em menos de 6 (seis) meses, pela mesma pessoa física ou jurídica ou que seja integrada pelo mesmo administrador ou procurador; (…) V – registro de pessoa jurídica com capital social flagrantemente incongruente ou incompatível com o objeto social; VI – reativação de registros empresariais antigos com novos sócios e novo objeto social; e VIII – registro de pessoas jurídicas diferentes constituídas no mesmo endereço, sem a existência de fato econômico que justifique; (…) IX – registro de pessoa jurídica cujo capital social seja integralizado por títulos públicos e/ou outros ativos de avaliação duvidosa; (…) XI – substituição integral ou de parcela expressiva do quadro societário, especialmente quando os novos sócios aparentem se tratar de interpostas pessoas; XII – mudanças frequentes no quadro societário, ou no objeto social, sem justificativa aparente (…)”.
As operações societárias e os registros dessas passam ao largo das atividades financeira e bancária, comumente citadas como exemplos de comunicações à UIF, porém foram fundamentais à viabilização da organização criminosa a uma atividade lucrativa, lícita e fulcral à sociedade paulistana. E dessa constatação é possível concluir que, se o Estado brasileiro desejar uma maior eficiência no enfrentamento às organizações criminosas, deverá admitir, com mais ênfase, que uma melhor tutela da segurança pública passa por medidas que não necessariamente estão na seara penal ou que serão adotadas por agentes da segurança pública. Fortalecimento das controladorias e auditorias dos órgãos públicos, especialmente no tocante às licitações e fiscalização contratual, e regulação e cumprimento desta pelos setores obrigados a comunicar a UIF, exigindo-se destes contínuo aperfeiçoamento de seus registros e controles internos, bem como robustecimento da capacidade de processamento e análise das informações pela UIF são exemplos de ações que impactariam positivamente o enfrentamento às organizações criminosas, permitindo que mais investigações e operações como as recentemente noticiadas cheguem a bom termo, exemplificando que o eficiente enfrentamento não se dá em tiroteio e operações letais, mas com ação interinstitucional, precedida de investigação e análise minudente das informações disponíveis que, cruzadas, revelam a dinâmica da parte mais vital do grupo criminoso: o dinheiro.