Múltiplas Vozes 16/08/2023

Políticas de Segurança Pública para a População LGBTI: uma comparação entre Brasil e Catalunha (Espanha)

A conscientização, a educação e a implementação de políticas públicas eficazes são fundamentais para transformar a realidade e garantir a plena proteção e igualdade de direitos para todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero

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Gustavo Bernardes

Mestrando em Sociologia PPGSOL/UnB, integrante do Laboratório de Gestão de Políticas Penais – LabGEPEN/UnB

Na tarde de 15 de fevereiro de 2017 em Fortaleza, Ceará, a travesti Dandara Kettley avisa sua mãe que vai sair de moto com um cliente. Pouco depois de subir na moto ela é cercada por um grupo de 12 homens que a tiram da moto e começam a agredi-la com pauladas, socos, chutes e tapas. A confusão chamou a atenção da vizinhança, mas ninguém tentou socorrê-la. Ferida, Dandara é colocada num carrinho de mão, levada para para um local próximo e assassinada a tiros. O crime foi filmado pelos próprios agressores. Ela tinha 42 anos.

Os Princípios de Yogyakarta dizem que toda pessoa, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero, tem o direito à segurança pessoal e proteção do Estado contra a violência ou dano corporal, infligido por funcionários governamentais ou qualquer indivíduo ou grupo.

No mesmo sentido, o Plano do Cairo, adotado na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento em 1994, enfatiza a importância do respeito pelos direitos humanos universais, incluindo o direito à liberdade e à autodeterminação. Isso implica que todas as pessoas devem ter o direito de tomar decisões informadas sobre sua sexualidade e vida sexual, sem sofrer discriminação ou coerção. Nesse contexto, a liberdade sexual abrange a capacidade de cada indivíduo de expressar sua sexualidade de maneira consensual e segura, livre de violência, coerção ou discriminação.

Apesar desse reconhecimento progressivo da liberdade sexual e dos direitos da população LGBTI, em muitas partes do mundo existem desafios persistentes. A discriminação, a violência e a criminalização da orientação sexual e identidade de gênero ainda são uma realidade para muitas pessoas em diferentes contextos. Diante desses desafios, muitos países têm procurado alternativas visando garantir a segurança da população LGBTI.

Visando discutir as dificuldades envolvidas na segurança pública da população LGBTI no Brasil, achei por bem trazer, a título de comparação, as políticas desenvolvidas no âmbito da região autônoma da Catalunha, na Espanha. Embora as diferenças entre Brasil e Catalunha sejam enormes em termos de dimensão territorial e demografia, a comparação, em termos de políticas públicas, faz sentido, uma vez que a Catalunha tem sido reconhecida, por movimentos sociais e outros países, como pioneira e mais progressista em questões relacionadas à população LGBTI. Ao longo das últimas décadas, a região tem implementado políticas e medidas abrangentes para proteger os direitos e promover a igualdade dessa população.

A região espanhola possui um Plano Interdepartamental contra a Discriminação de Pessoas Homossexuais e Transexuais[1] é uma iniciativa chave do governo catalão para combater a discriminação e promover a igualdade de direitos para a população LGBTI na região. Lançado pela primeira vez em 2006, o plano busca abordar os desafios específicos enfrentados pela população LGBTI, buscando garantir um ambiente seguro e inclusivo para todos e todas. O plano catalão é amplo e aborda desde questões do âmbito legislativo até questões de saúde e laborais.

Além do Plano, a Catalunha dispõe, no âmbito da segurança pública, da Lei 11/2014 que estabelece medidas específicas para garantir a segurança e o bem-estar da população LGBTI. Ela exige que os profissionais de segurança pública recebam treinamento adequado sobre questões relativas à orientação sexual, identidade de gênero, a fim de melhor compreender e lidar com as demandas e necessidades específicas dessa população. Isso inclui a identificação e o tratamento adequado de crimes de ódio motivados pela orientação sexual ou identidade de gênero.

Além disso, a lei estabelece a criação de protocolos específicos para a abordagem de crimes de ódio e violência contra a população LGBTI. Esses protocolos visam garantir uma resposta efetiva e sensível às vítimas, além de promover a cooperação entre as autoridades competentes para garantir a investigação e punição adequadas dos autores desses crimes.

Além de um plano e de legislação, a Catalunha também conta com consejos de seguridad (conselhos de segurança)[2] temáticos dentro da sua polícia (Mossos d’Esquadra) como por exemplo: conselho para mulheres, conselho para turismo seguro, conselho para mobilidade segura, conselho para eventos, conselho para emergências e conselho para diversidade que contempla, raça e etnia, xenofobia, pessoas com deficiência, antissemitismo, religião e crenças, ideologia, exclusão social e orientação e identidade de gênero.

Os Consejos de Seguridad são órgãos de consulta e colaboração dentro da Mossos d’Esquadra. Esses conselhos são compostos por representantes de diferentes setores da sociedade civil e têm como objetivo promover a participação cidadã e a colaboração entre a comunidade e a polícia para melhorar a segurança pública.

Já no Brasil, as políticas de segurança pública para a população LGBTI têm enfrentado desafios significativos. Embora alguns avanços tenham sido feitos, como a implementação de delegacias especializadas e a capacitação de profissionais de segurança, ainda existem lacunas importantes a serem abordadas.

Inicialmente é importante destacar que uma das maiores dificuldades de se estabelecer uma política consistente de segurança pública para a população LGBTI diz respeito à dificuldade de lidar com as diferentes realidades nas unidades da federação. O Brasil é um país imenso, com desigualdades regionais, com prioridades diferentes em diferentes setores e onde cada estado da federação tem a maior parte do trabalho de polícia sob sua responsabilidade. São as polícias civil e militar que atuam na maior parte dos casos envolvendo violência (homicídios, roubos, furtos…) e discriminação contra a população LGBTI. Contudo, apesar da ampla competência dos estados na área da segurança pública, compete exclusivamente à União legislar sobre direito penal e direito processual penal. Essa situação gera, muitas vezes, um descompasso na política de segurança pública brasileira. Ademais, cumpre referir que a organização e o trabalho da polícia estão disciplinados na Constituição Federal, o que torna complexo qualquer alteração ou adequação na organização das polícias que envolvam questões mais profundas.

O Brasil ficou, durante muito tempo, sem uma lei que criminalizasse a LGBTIfobia. Essa lacuna legal obviamente interferiu na atuação policial levando, por consequência, a uma frequente omissão dos agentes de segurança pública diante dos delitos contra a população LGBTI. Somente em 13 de junho de 2019, a situação se alterou, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e do Mandado de Injunção (MI) 4.733, reconhecendo que a discriminação e a violência contra pessoas LGBTI são equiparáveis ao crime de racismo[3].

Mesmo com a equiparação da LGBTIfobia ao crime de racismo, ainda há desafios significativos no combate à discriminação e à violência contra a população LGBTI. A conscientização, a educação e a implementação de políticas públicas eficazes são fundamentais para transformar a realidade e garantir a plena proteção e igualdade de direitos para todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Além disso, a ausência de um plano ou planejamento estratégico para garantir a segurança da população LGBTI é outra questão preocupante. A falta de diretrizes claras e de critérios específicos para a proteção da comunidade LGBTI pode resultar em respostas ineficazes por parte das autoridades de segurança. Isso contribui para a vulnerabilidade dessa população e para a subnotificação de casos de violência e discriminação.

Portanto, embora o Brasil tenha iniciativas interessantes como as delegacias de crimes raciais e delitos de intolerância (Decradi), essas iniciativas são pontuais e não cobrem todo o território nacional. Ademais, ainda não temos diretrizes e políticas de fomento em nível nacional para que ações de segurança pública direcionadas para a população LGBTI sejam desenvolvidas pelas unidades da federação. Além disso, percebemos que há pouco ou nenhum diálogo entre as Secretarias de Segurança Pública e polícias com os movimentos sociais organizados, diria que existe até mesmo uma certa desconfiança de ambos os lados.

No Brasil, é urgente a necessidade de uma abordagem abrangente e eficaz para enfrentar a violência e a discriminação contra a população LGBTI. Isso envolve:

  • Criação de um arcabouço normativo que regule as políticas de segurança pública para populações vulneráveis;
  • Apoio político e financeiro para iniciativas exitosas nos estados, como as Decradi;
  • Desenvolvimento de um plano estratégico de segurança,
  • Fortalecimento e capacitação das instituições de segurança e a promoção de uma cultura de respeito à diversidade;
  • Promover a criação de canais de diálogo entre as instituições de segurança e os movimentos sociais LGBTI;
  • Produzir e consumir dados sobre a violência contra a população LGBTI.

Por fim, fica evidente que a Catalunha possui uma gama de políticas e ações que podem servir de inspiração ao Brasil. Não se trata simplesmente de transpor iniciativas de um país para o outro. É necessário considerar as diferentes realidades. Contudo, as políticas da região espanhola podem sim mostrar alternativas para que o Brasil construa suas próprias soluções para um problema tão complexo e grave como a garantia de segurança para uma população vulnerável como a LGBTI. No entanto, é importante frisar que tanto a Catalunha quanto o Brasil demandam um compromisso contínuo, ações efetivas e a colaboração de diversos atores para promover a igualdade de direitos e construir sociedades mais inclusivas e seguras para todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.

 

[1] http://transexualia.org/documentacion-apoyo/ (acessado em 19/06/2023)

[2] https://mossos.gencat.cat/es/consells_de_seguretat/ (acesso em 21/06/2023)

[3] É importante ressaltar que essa decisão do STF é considerada uma medida provisória até que uma legislação específica seja aprovada pelo Congresso Nacional. A equiparação da LGBTIfobia ao crime de racismo foi um reconhecimento de que a proteção aos direitos das minorias deve ser garantida, e a falta de uma legislação específica não pode ser um obstáculo para a proteção da população LGBTI contra a discriminação e a violência.

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