Política da Morte: o rebranding de Tarcísio de Freitas
Ao intensificar operações policiais, Tarcísio busca reafirmar seu apelo aos segmentos mais radicais do eleitorado que valorizam a repressão e uso da força como forma de combate à criminalidade, numa disputa pelo espólio do bolsonarismo
Ariadne Natal
Doutora em sociologia, pesquisadora de pós-doutorado do Peace Research Institute Frankfurt (PRIF)
Nos primeiros três meses de 2024, o estado de São Paulo registrou um aumento alarmante de 138% no número de pessoas mortas por policiais militares em serviço, totalizando 179 vítimas. O crescimento coincide com a implementação de operações policiais altamente letais e marca uma nova era de políticas de segurança pública que retrocedem décadas de modernização e avanços democráticos. Essas políticas, longe de solucionar os problemas de criminalidade e insegurança que afligem a população paulista, servem claramente a outros interesses, moldando-se numa estratégia política que visa fortalecer a posição eleitoral de Tarcísio de Freitas.
Entre o técnico moderado e o radical ideológico
Tarcísio Gomes de Freitas iniciou sua carreira como engenheiro militar, adquirindo proeminência no funcionalismo público com seu perfil pragmático e habilidade de liderança em administrações de variados espectros políticos, de Dilma Rousseff a Jair Bolsonaro, mantendo-se geralmente distante das disputas ideológicas mais acirradas. No entanto, sua trajetória tomou outro rumo conforme novos horizontes se delinearam, e ele começou a reformular sua imagem para a política eleitoral. Um prenúncio simbólico dessa mudança ocorreu em dezembro de 2021, quando seu nome já era cotado para o governo de São Paulo e ele apareceu em um evento sobre empreendedorismo em Brasília usando um broche em formato de fuzil. Em 2022, durante a campanha eleitoral, Tarcísio intensificou sua aproximação com o bolsonarismo radical, participando de motociatas, adotando discursos religiosos e expressando críticas a políticas de controle das polícias, como o uso de câmeras corporais.
Sua eleição como governador de São Paulo foi seguida por algumas alianças políticas com figuras tradicionais que desagradavam a base à direita, como Gilberto Kassab, mas que foram contrabalanceadas com a proximidade de nomes alinhados ao bolsonarismo radical, como o capitão Derrite para a segurança pública. A formação do governo deixou claro o malabarismo de equilibrar o pragmatismo político e a ideologia radical, a fim de manter simultaneamente a confiança de diversos grupos.
Tal flexibilidade sempre suscitou certa desconfiança sobre a lealdade de Tarcísio ao bolsonarismo. Uma crise aguda dessa falta de confiabilidade ocorreu no começo de julho de 2023, quando o governador endossou a proposta de reforma tributária do governo Lula, colaborando com ajustes no texto e reunindo-se com o ministro Fernando Haddad. Essa postura pragmática não foi bem recebida pela base bolsonarista nem pelo próprio Bolsonaro, que, em reunião, manifestou publicamente seu descontentamento e discordância, com Tarcísio enfrentando vaias e hostilidade dos presentes. A controvérsia ocorreu logo após a decisão do TSE que tornou Bolsonaro inelegível, abrindo espaço para a disputa pelo seu legado político. Acusado de traição e alvo de críticas públicas num momento crucial para sua consolidação como herdeiro do bolsonarismo, Tarcísio agiu rapidamente, reajustando sua estratégia para se alinhar mais firmemente à extrema-direita.
Instrumentalização da Violência Policial
No final de julho de 2023 foi colocada nas ruas a Operação Escudo, uma das mais letais na história da Polícia Militar paulista. Essa operação catapultou Tarcísio de Freitas aos holofotes diários dos noticiários, solidificando sua imagem como um governador implacável na guerra contra o crime organizado, com uma abordagem que coloca Direitos Humanos em segundo plano. Essa estratégia não apenas buscou apaziguar os apoiadores bolsonaristas desiludidos, mas reforçou sua reputação como um político rigoroso e um defensor de políticas de segurança controversas, recolocando-o como um sucessor natural de Bolsonaro.
Tais operações policiais não podem ser analisadas apenas no contexto de uma política de segurança, mas como peças-chave em uma estratégia política mais ampla. Trata-se de uma agenda que instrumentaliza a força policial para demonstração de poder e autoridade como parte de uma estratégia de autoafirmação política, visando solidificar a imagem de Tarcísio como um líder comprometido com os princípios da extrema-direita. Ao intensificar tais operações, especialmente em momentos de crise política, Tarcísio busca reafirmar seu apelo aos segmentos mais radicais do eleitorado que valorizam a repressão e o uso da força como forma de combate à criminalidade. Em meio a uma disputa ideológica pelo espólio do bolsonarismo, tais ações violentas se tornaram um mecanismo para Tarcísio reafirmar seu alinhamento com a extrema-direita e solidificar sua identidade política, aproximando-o de posições mais radicais.
Após uma carreira marcada por uma postura técnica e moderada, Tarcísio de Freitas tem se reinventado como um político radical que usa a segurança pública como uma ferramenta de afirmação política. Seu perfil pragmático e orientado para resultados ironicamente se mantém. Mas o objetivo do governador, ao se aproximar dos temas da segurança pública, não visa à diminuição da criminalidade e à promoção da segurança, mas à instrumentalização do tema e à produção de resultados relacionados a seu próprio projeto político, pouco importando a quantidade de corpos que serão enterrados ao longo desse processo.