Múltiplas Vozes 23/11/2022

Política Criminal e Controle do Delito: Por uma Agenda de Reformas

Nunca se esteve tão perto de alcançar uma forma de regulação da maconha que se afaste do viés proibicionista como tem sido a tendência de dezenas de países ao redor do globo nos últimos anos

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Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Sociólogo, professor titular da Escola de Direito da PUCRS

Laura Girardi Hypólito

Doutoranda em Ciências Criminais pela PUCRS

A perspectiva de retomada de uma agenda racional e democrática de política criminal por parte do governo federal nos coloca diante de desafios importantes, que terão de ser enfrentados pelo Ministério da Justiça no próximo período.

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que a experiência de um governo de extrema direita, caracterizado por um discurso populista de endurecimento penal, mas pela desestruturação institucional, deve servir como um aprendizado importante sobre o papel dos mecanismos de controle penal no contexto brasileiro contemporâneo. Se de um lado demonstra a falácia e os riscos do populismo penal, voltado muito mais para contentar a população amedrontada do que para efetivamente coibir as condutas ilegais, de outro demonstra também a necessidade de dar maior higidez e capacidade de atuação às instituições policiais e judiciais.

A ação de milícias urbanas, de grupos armados de grileiros, desmatadores e garimpeiros, a violência contra mulheres, a discriminação por preconceito de raça e de orientação sexual, as manifestações neonazistas e contra o Estado Democrático de Direito, a disseminação de armas de fogo e as altas taxas de violência letal são condutas já efetivamente criminalizadas pela legislação penal, mas ainda muitas vezes deixadas em segundo plano pela atuação das polícias ostensivas e judiciárias. Da mesma forma, a disseminação de condutas criminosas por meio da internet, seja por delitos contra a honra, seja pela perseguição e as ameaças, seja pela subtração de recursos por meio da apropriação indébita ou do estelionato, exigem a especialização da investigação criminal em meio digital.

Se nas últimas décadas o desafio da política criminal se concentrou na criminalização de novos âmbitos da vida social, cada vez mais o desafio que se coloca é o do aperfeiçoamento institucional, para dar conta do esclarecimento adequado dos crimes e garantir a efetividade da justiça penal, com a devida responsabilização criminal, com o devido processo e a garantia do contraditório. Para tanto, algumas questões importantes precisam ser debatidas, como a possibilidade de uma lei periódica de política criminal, como ocorre em Portugal, em que o parlamento estabelece as prioridades de atuação da polícia judiciária diante de uma demanda sempre além da capacidade de esclarecimento. Da mesma forma, é preciso investir no aperfeiçoamento dos procedimentos judiciais, desde as cautelares no âmbito do processo, as audiências de custódia, a celeridade processual sem redução de garantias e a implementação da execução da pena, seja a prisão, sejam as alternativas penais. Nesse sentido, destravar no STF e implementar a figura do juiz de garantias é sem dúvida uma prioridade, assim como a revisão da lei de drogas, também em pauta há muito tempo no Supremo.

De acordo com os dados do Departamento Penitenciário Nacional referentes ao período de janeiro a junho de 2022, o Brasil possui 837.443 pessoas presas, o que faz com que o país ocupe a terceira posição mundial em número absoluto de encarcerados, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Desse total, existem 750.389 incidências por tipo penal, das quais 215.466 correspondem a delitos referentes à atual legislação de drogas. Ou seja, atrás apenas do grupo de crimes contra o patrimônio (que engloba diversos delitos tais como furto, roubo, extorsão, usurpação, dano, apropriação indébita, estelionato, fraude e receptação) as incriminações somente pelo delito de tráfico de entorpecentes representam 28,74% do total de encarceramentos no Brasil, o que demonstra o papel central que a atual lei de drogas (11.343/06) desempenha nos altos níveis de encarceramento no país. Tendo em vista que grande parte das prisões referentes a delitos envolvendo a lei de drogas decorre de flagrantes com a apreensão de pequenas quantidades de droga em posse de indivíduos que são majoritariamente jovens do sexo masculino, primários, de baixa escolaridade e moradores de regiões periféricas, é possível evidenciar o perfil dos encarcerados por tráfico no Brasil.

Para enfrentar esta questão, há décadas movimentos sociais, especialistas e diversos grupos da sociedade civil reclamam por mudanças no campo da política de drogas brasileira. No entanto, foi principalmente na última década que algumas dessas exigências ultrapassaram as barreiras das demandas populares e conseguiram penetrar em ambientes institucionais como do Judiciário, do Legislativo e de outras agencias de controle do país, como a ANVISA.

Como referido, está em curso no STF o julgamento do Recurso Extraordinário 635659, que discute a inconstitucionalidade da criminalização do porte de drogas para uso pessoal. Até o momento, três ministros já votaram no sentido de descriminalizar, assim como se manifestaram acerca da necessidade de definição de critérios objetivos que diferenciem usuários de traficantes. Já no Legislativo avançam propostas no sentido de legalizar a cannabis para fins medicinais no país. Um exemplo é o Projeto de Lei 399/15, de autoria do então deputado Fábio Mitidieri (PSD), que originalmente buscava viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta cannabis sativa em sua formulação.

Ao passar pela comissão especial da Câmara dos Deputados, presidida pelo Deputado Paulo Teixeira (PT), o projeto original sofreu alterações, sendo proferido parecer favorável, que permite também a legalização do cultivo da cannabis no Brasil, exclusivamente para fins medicinais, veterinários, científicos e industriais.

Ainda há um longo caminho a ser percorrido no Legislativo brasileiro para que o projeto seja aprovado; no entanto, nunca se esteve tão perto de alcançar uma forma de regulação da maconha que se afaste do viés proibicionista, como tem sido a tendência de dezenas de países ao redor do globo nos últimos anos. No mesmo sentido desses avanços na área medicinal, em 2017 a ANVISA divulgou o primeiro registro de um remédio feito à base de cannabis aceito no Brasil, e desde então esse número já subiu para mais de 15 medicamentos.

Retomar a racionalidade do debate sobre política criminal, estabelecendo temas prioritários, revisando a legislação com base em critérios científicos, tanto em matéria de Direito Penal material quanto processual, enfrentar problemas estruturais da justiça penal e avançar no diálogo interinstitucional para encontrar caminhos de aperfeiçoamento e maior efetividade, são tarefas inadiáveis para ampliar a legitimidade dos mecanismos de controle do delito e com isso da própria ordem democrática.

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