Profissão Polícia 28/09/2022

Polícias e violências simbólicas

As polícias precisam enfrentar agressões de gênero e preconceitos diversos, como assédios sexual e moral, bullying, homofobia, discriminações racial e social. Estarão preparadas para enxergar as evidências das violências simbólicas?

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Alexandre Pereira da Rocha

Doutor em Ciências Sociais (UnB); membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP)

As polícias brasileiras lidam com todo tipo de violências, sendo geralmente físicas, como assaltos, homicídios, lesões corporais. Por outro lado, cada vez mais o serviço policial está sendo acionado para tratar de violências caracterizadas pelo simbolismo, as quais entram nos campos psicológico, emocional e cognitivo das vítimas, com margem para subjetividade. Neste último caso, as polícias precisam enfrentar agressões de gênero e preconceitos diversos; por exemplo, assédios sexual e moral, bullying, homofobia, discriminações racial e social. Agora, será que as forças policiais estão preparadas para enxergar as evidências das violências simbólicas?

A violência simbólica está para além do fato notificado como crime, visto que se refere a práticas abusivas não percebidas ou ignoradas pelo registro policial. Por isso, vale recordar profícua lição do professor Luís Roberto Cardoso de Oliveira – que, no provocativo artigo “Existe violência sem agressão moral? (2008) – apontava a violência simbólica ou moral como intrínseca à violência física. Nas palavras do professor: “sempre que se discute a violência como um problema social tem-se como referência a ideia do uso ilegítimo da força, ainda que frequentemente esse aspecto seja tomado como dado, fazendo com que a dimensão moral da violência seja pouco elaborada e mal compreendida, mesmo quando constitui o cerne da agressão do ponto de vista das vítimas”. Desse modo, embora essenciais às dinâmicas das violências, aspectos simbólicos podem ser relegados pela falta de compreensão das polícias.

Por exemplo, no trabalho policial é comum a ocorrência de injúria, que é um tipo penal apropriado para apurar xingamentos que ofendem a honra ou dignidade humana. Trata-se de um crime mensurado pelo componente moral, pois afeta o âmago da vítima. Todavia, mesmo a injúria sendo relacionada ao critério subjetivo do ofendido, para as polícias ela é observável por que consta num artigo no Código Penal. Portanto, no campo policial, em geral, não se avaliam os elementos simbólicos que possam existir num crime de injúria, mas se prioriza o aspecto material do fato. No entanto, um xingamento pode ser a exteriorização de preconceitos, como as condições de gênero, raça, social.

As violências simbólicas são caracterizadas pelas sutilezas; por isso, não é fácil apurá-las no ato do registro policial. Dessa forma, ainda no crime de injúria, na Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), entre janeiro a agosto de 2022, foram registradas 14.373 ocorrências. Desse total, apenas 0,9% foram classificadas como injúria preconceituosa relacionada ao sexo e gênero. Entretanto, no conjunto dos registros de injúria, ao se considerar o sexo declarado das vítimas, nota-se que cerca de 71,5% são do feminino; enquanto para os autores, 70,0% são do masculino. Esses números demonstram que há expressiva vitimização de mulheres, logo não seria açodado cogitar que há muitos casos de injúria por razões da condição do sexo feminino não relatadas. Quer dizer, apesar dos registros de injúrias, pode-se estar diante de subnotificações de casos de preconceitos simbólicos.

 

Fonte: PCDF/DGI/DATE. OBS: dados sobre sexo, raça e cor dos envolvidos podem ser amostrais, tendo em vista que, nem todas as informações constam nos registros policiais. No sistema de ocorrências da PCDF, o critério do sexo feminino e masculino é definido pelo sexo informado na identidade civil; embora se tenha a possibilidade de indicação da orientação sexual, conforme manifestação da vítima. O critério raça/cor é de autodeclaração, a ser preenchido pelo policial.

Fonte : PCDF/DGI/DATE

Particularmente no Distrito Federal, as forças policiais têm construído estruturas para tratar de agressões marcadas pelo simbolismo. Exemplificando com o caso da PCDF, há delegacias especializadas no atendimento à mulher (DEAM’s); projeto Núcleo Integrado de Atendimento à Mulher (NUIAM) para acolhimento integrado do registro policial, psicossocial e jurídico; Delegacia de Repressão aos crimes por Discriminação Racial, Religiosa, ou por Orientação Sexual, ou Contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (DECRIN). Ademais, há protocolos, normatizações e capacitações dos profissionais a fim de proporcionar serviço público mais humanizado. Entretanto, as amostras dos registros de injúria e inquéritos por Lei Maria da Penha assinalam que há baixa quantidade de fatos no campo simbólico, o que pode indicar que ainda existem dificuldades na compreensão dessa contextualidade.

Enfim, apesar dos avanços nas legislações e dos órgãos policiais, as violências simbólicas podem ainda não ser adequadamente percebidas; pior, ignoradas. A breve amostra de dados da PCDF indica que os números desse universo ainda são parcos, sendo que é bem provável que se repitam noutras corporações brasileiras. Essa situação é concretamente inquietante, pois, como as polícias funcionam como portas de entrada no sistema de justiça criminal, limitações delas podem comprometer a apreensão simbólico-moral das violências ao longo de várias instâncias estatais.

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