Juliana Lemes da Cruz
Doutoranda em Política Social pela UFF; Assistente Social e Mestra em Saúde, Sociedade e Ambiente pela UFVJM; Membro do GEPAF/UFVJM; Coordenadora do Projeto Mulher Livre de Violência; Colaboradora do INBRADIM; Professora de Ensino Superior; e Cabo da Polícia Militar de Minas Gerais, lotada em Teófilo Otoni
Sem dúvidas, o lugar de onde se fala influencia na interpretação da realidade. Por isso, uma mesma situação pode ser enxergada a partir de ângulos bastante diferentes. Se, por um lado, a manifestação das forças de Segurança Pública de Minas Gerais, ocorrida em 21 de fevereiro, foi interpretada por alguns segmentos sociais e acadêmicos como equivocada, pelo descumprimento de normatizações que regem a categoria, por outro concentrou membros de distintas instituições do campo da segurança, com a anuência dos seus respectivos comandos, reunindo na região central de Belo Horizonte mais de 30 mil pessoas. Algo inédito.
A convocação geral foi disseminada pelas associações classistas, a partir de suas respectivas estruturas, localizadas em várias regiões do estado. A pauta em discussão diz respeito à recomposição das perdas inflacionárias da categoria, negociada no ano de 2019 com o governo de Minas. À época, acordou-se o reajuste dividindo-o em três partes: no ano de 2020 (13%), 2021 (12%) e 2022 (12%). No entanto, o governo cumpriu apenas a primeira parte. Sob franca negociação, mas, sem sucesso, os representantes classistas viram-se diante do risco de uma ruptura institucional. Romeu Zema, governador de Minas, teria condicionado a recomposição salarial à aprovação do Regime de Recuperação Fiscal proposto pelo governo federal. Segundo os representantes da categoria, a manobra traria prejuízos aos profissionais em médio e longo prazos.
A greve da Polícia Militar mineira do ano de 1997: um marco para a categoria
A atual conjuntura reativou a memória coletiva sobre a greve do ano de 1997, considerada o principal ponto de inflexão da polícia mais antiga do país. A ocasião marcou mudanças significativas para a vida dos policiais da ponta da linha: as praças.
As notícias sobre a crise da PM estouraram em meados da década de 1990, período em que tanto o país quanto o estado passavam por crítica situação econômica. Naquele período, fazia-se nítida a subdivisão da Polícia Militar em duas. Por um lado, as praças, responsáveis pela execução das ordens emanadas pelas chefias diretas. Por outro, os oficiais, incumbidos do comando e gestão das unidades sob responsabilidade direta e estreita relação com o governo. Em razão dessa proximidade e interesses decorrentes, acordos relacionados aos salários teriam sido realizados com os coronéis do alto comando da corporação que recebiam rendimentos equivalentes aos de secretários de Estado, o que contrastava com os baixíssimos salários percebidos pelas praças.
Descontentes com a situação, em junho de 1997, munidos de uma pauta de reinvindicações, reuniram-se no centro da capital mineira cerca de mil policiais militares que compunham as bases da corporação: soldados, cabos, sargentos e subtenentes. Os oficiais ganharam aumento médio de 18% e não aderiram à greve instaurada.
Ocorreram duas grandes assembleias, uma no dia 13 e outra, dia 24 de junho de 1997. Na derradeira ocasião, em meio aos entraves da manifestação, Cabo Valério Oliveira foi baleado na cabeça, vindo a óbito. O governo cedeu e houve reajuste de 48,2% no salário das praças. Logo após a conquista, prisões, indiciamentos e expulsão dos líderes do movimento.
No ano de 1999 a Assembleia Legislativa de Minas Gerais aprovou uma proposta de emenda à Constituição que incluiu os quase duzentos policiais expulsos da PM nos quadros do Corpo de Bombeiros Militar. Nessa direção, por meio da Emenda 110 de 2021, houve mudança na Constituição do Estado para garantir às praças expulsas em decorrência da greve de 1997 o direito de retornarem à PM.
A manifestação das forças de segurança pública de Minas demarca a crise
A queda do poder de compra dos profissionais parece ter sido o divisor de águas para a manifestação de 21 de fevereiro. Somam-se à questão salarial fatores intimamente relacionados às condições de trabalho. O movimento agregou membros do serviço ativo e veteranos da Polícia e Bombeiro Militares, Polícia Civil, Polícia Penal e Agentes Socioeducativos, bem como simpatizantes e familiares.
O estado de Minas Gerais possui larga extensão territorial, inúmeros problemas e diferenças sociais, econômicas, culturais e políticas. A PMMG, em particular, é a única instituição em nível de estado que chega à população de todos os 853 municípios mineiros e atende à demanda espontânea mesmo que não existam equipamentos públicos adequados para realizar atendimentos específicos.
Quanto à participação de policiais militares na manifestação, vale lembrar que o Estatuto dos Militares do estado de Minas Gerais (Lei. 5.301/2002) não prevê proibição da participação de policiais não uniformizados em manifestações. Sendo assim, pareceu clara a anuência do Comandante Geral da PMMG, o Coronel Rodrigo Sousa Rodrigues, ao considerar o […] evento legítimo, inclusive com a participação de quem ombreia na ativa […]”. (Nota do Comando, 19/02/2022).
De fato, a PM é a estrutura estatal legítima para fazer uso da força, e por assim ser, representa o principal instrumento para contenção de iniciativas populares em conflito com interesses dos governos vigentes. Diante disso, pode soar divergente ou contraditório a classe da segurança pública assumir o lugar nas ruas do lado contrário a que estão postas por força das funções que exercem. Ademais, há reforço dessa ideia de negação à condição do policial enquanto cidadão, à medida que se compreende Polícia tão somente como um dispositivo do Estado, promovendo o silenciamento dos indivíduos que movimentam aquela engrenagem. Se são vistos ou observados como mais um número a serviço do Estado, dificilmente serão reconhecidos como trabalhadores e parte integrante do povo.
Apesar de não ser amplamente difundido à população, as forças de segurança mineiras têm trabalhado no limite de suas capacidades. Especialmente aqueles que estão na linha de frente: soldados, cabos e sargentos da PM. Estes, que constituem peças essenciais para o desenvolvimento das políticas públicas nos municípios, são os mais impactados com o achatamento dos salários e a redução do poder de compra.
Representam também a camada que se envolve em trocas de tiro e ocorrências complexas; que não pode expressar de pronto o que ocorreu durante determinada ação; que, mesmo sob amparo da norma, compõe os policiais que atuam com maior frequência nas ruas e, por consequência disso, também são os mais submetidos aos processos judiciais que perduram por anos. Anos de angústia, custeados pelo próprio policial, seja ele culpado ou inocente.
Como evitar se envolver em ocorrências complexas se o cotidiano demanda intervenção das forças do Estado? Como “escolher” não estar vulnerável a toda sorte de risco se o policial é quem representa esse Estado? Nessa direção, importante ressaltar que a individualização de condutas encobre os problemas de funcionamento de todo um sistema, invisibilizando o profissional como sujeito de transformação da realidade em que atua.
Desde o recrutamento, o “aluno” aprende que o ingresso na polícia o privará de frequentar lugares e conviver com algumas pessoas. Ao longo da carreira, descobre que as circunstâncias impostas em razão das ocorrências policiais não lhe oferecem o conforto da escolha. O ritmo envolve posturas determinantes: agir, reagir, não matar, não surtar e não morrer. No conjunto dos elementos que compõem esta não escolha, a pressão mental, social, institucional e financeira.
Esta é a única categoria que, ao preservar informações internas como medida de segurança, impossibilita que a população acesse a rotina exaustiva que compõe o complicado exercício de garantir segurança pública. E isso, infelizmente, impede que o povo, bem como a academia e outras instituições enxerguem o que há por trás da farda, do distintivo ou dos muros dos quartéis.
O final do dia 21 de fevereiro indicou paralisação das forças de segurança de Minas. A categoria espera, para os próximos dias, que as negociações avancem com o governo, o único capaz de flexibilizar o diálogo e desarmar a bomba de centro dessa crise.