Múltiplas Vozes 26/03/2025

Polícia prende e a justiça solta: quem tem razão?

Frase infeliz do ministro Lewandowski suscita debate oportuno sobre as audiências de custódia. Afinal, qual é a perspectiva que prevalece: a garantista ou a punitivista?

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Luis Flavio Sapori

Professor da PUC-MG e associado sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Ricardo Lewandowski fez uma afirmação infeliz no dia 19 de março. A declaração do ministro da Justiça e Segurança Pública provocou polêmica que não contribuiu em nada para o avanço do debate sobre segurança pública. Entidades representativas dos delegados de polícia e dos magistrados se manifestaram nos últimos dias condenando ou apoiando a fala ministerial de que “polícia prende mal e o Judiciário é obrigado a soltar”. O titular da pasta da Justiça se referia à notória insatisfação dos policiais brasileiros com as audiências de custódia, vistas por eles como expressão institucional da máxima “polícia prende e a justiça solta”. Adotou postura de representante do Judiciário, ignorando o fato de que ocupa cargo no Executivo. Nos dias seguintes foi obrigado a corrigir o ato falho, reconhecendo em nota do MJSP que “o detido é apresentado ao juiz na audiência de custódia, mas, por falta de padronização e de compartilhamento no registro de informações, o magistrado não tem acesso a dados importantes, como, por exemplo, os antecedentes do suspeito.” Ou seja, o problema não é da polícia mas da falta de integração do Judiciário com as polícias, o que, convenhamos, constitui diagnóstico mais próximo da realidade.

Essa controvérsia não se restringe ao Brasil. Policiais de todo o mundo reclamam dos respectivos judiciários por não avalizarem sumariamente os resultados de suas prisões e/ou investigações criminais. Ignoram o fato de que o fluxo do sistema de segurança pública e justiça criminal, conforme institucionalizado na modernidade, caracteriza-se pelo formato de um funil. A relação proporcional entre sentenças condenatórias e prisões efetivadas sempre será inferior a 100% dado que o processo penal existe, necessariamente, para qualificar melhor quem deve ser condenado à pena de prisão. Se a justiça não soltar muitos dos detidos pelas polícias, inocentes tendem a ser indevidamente punidos. Além disso, a tortura persiste no país e não pode ser avalizada por uma justiça pautada por princípios civilizatórios. Por outro lado, não se pode ignorar que muitos magistrados não corroboram as prisões policiais pela adesão a um “garantismo ingênuo” que postula o criminoso como pobre vítima da sociedade. Não é incomum criminosos contumazes na prática de roubos e furtos serem liberados em audiências de custódia pela leniência de magistrados. E os policiais têm razão de se indignarem com isso.

Para uma compreensão mais equilibrada desse embate corporativo é preciso analisar como as audiências de custódia têm funcionado na prática. Em que medida elas estão (des) legitimando o trabalho policial? Nada melhor do que recorrer aos dados empíricos disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Sistema de Audiências de Custódia (SISTAC). E, contrariando a percepção de senso comum de ambos os lados, há relativo equilíbrio entre prisões e solturas no funcionamento desse instituto jurídico. Entre janeiro de 2015 e agosto de 2024, ocorreram cerca de 1.311.136 audiências de custódia referentes a prisões em flagrante realizadas pelas polícias, em todo o território nacional. Desse total, 711.966 resultaram em prisões preventivas e 595.818 resultaram em liberdade concedida aos presos. Outras 3.255 audiências tiveram como desfecho a decretação de prisão domiciliar. Em termos proporcionais, nesses quase dez anos de audiência de custódia no Brasil, as prisões em flagrante feitas pelas polícias foram ratificadas em 54,3% dos casos, ao passo que o relaxamento das prisões em flagrante ficaram no patamar de 45,4% dos casos. Os 0,3 % restantes foram encaminhados para prisões domiciliares.

Em termos agregados, os dados das audiências de custódia não corroboram as máximas “polícia prende, justiça solta” ou mesmo “polícia prende mal e o Judiciário é obrigado a soltar”. Mesmo com a prevalência da conversão dos flagrantes em prisões preventivas sobre a soltura dos presos, a diferença não é tão expressiva a ponto de sustentar a conclusão de que a perspectiva punitivista seja soberana na prática e muito menos que a perspectiva garantista tenha dominado o Judiciário. De modo geral, entendo que as audiências de custódia estão funcionando bem, mesmo reconhecendo que em casos isolados policiais e magistrados têm razão em reclamarem uns dos outros de equívocos cometidos.

Por fim, é preciso destacar que parte relevante dessa polêmica deriva de um sistema de segurança pública e justiça criminal frouxamente articulado. Polícias, Ministério Público, Judiciário e sistema prisional constituem aparatos organizacionais com interesses distintos e pautas muito corporativas, prevalecendo a desconfiança em detrimento da cooperação e articulação operacional na relação entre eles. O efeito agregado dessa frouxa articulação é a ineficiência no controle da criminalidade na sociedade brasileira, o que explica em boa medida a prática de colocar a culpa  no “quintal do vizinho”.

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