Multiplas Vozes 05/04/2023

POLÍCIA LTDA: QUANDO A SEGURANÇA PÚBLICA VIRA NEGÓCIO

Precisamos, urgentemente, discutir formas mais eficazes de regular as fronteiras entre a segurança pública e a privada

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Deborah Fromm

Doutora e Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pesquisadora do Núcleo de Etnografias Urbanas (NEU) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Estamos em 2018, três carros de uma companhia seguradora são, em uma mesma tarde, roubados perto do aeroporto de Congonhas, também na cidade de São Paulo. As vítimas ligam para o 190. A informação e os dados dos veículos são passados por um policial militar, em troca de benefícios financeiros, para uma empresa privada de recuperação de veículos. Os chamados “caçadores”, motoqueiros que buscam carros roubados, saem às ruas em busca dos automóveis subtraídos e mantêm a central de monitoramento atualizada sobre as buscas. Seu trabalho é comissionado e só recebem quando encontram o veículo para a seguradora.

Durante outra tarde paulistana, ainda em meados da década de 1990, Enzo[1] passeava como passageiro no Porsche vinho de seu amigo nas ruas de um bairro nobre da capital. Até que dois carros, um na frente e outro atrás, fecharam a passagem do Porsche. Logo dois homens armados se aproximaram, um em direção ao motorista e o outro em direção a Enzo. Os assaltantes levaram o carro de luxo e os amigos se dirigiram à delegacia mais próxima. Enzo conta que, naquela época, já era conhecido no mercado de seguros, setor no qual ele mesmo tem uma empresa, que os policiais só recuperavam veículos roubados mediante o pagamento de comissões. Segundo ele, os valores variavam de 5% a 10% do valor do veículo. Pois bem. Enzo e seu amigo foram até a delegacia fazer o B.O e, em suas palavras: “Quando [os policiais] souberam que era um Porsche, não sobrou um policial lá [na delegacia]. Todo mundo queria a sua comissão”. Dado que se tratava de um carro de luxo com alto valor comercial, 5-10% do preço de mercado do veículo seria uma boa recompensa para ser compartilhada entre os oficiais.

Ao longo dos anos 2000, houve uma institucionalização e um empresariamento desse tipo de serviço de proteção atrelado a uma crescente indústria de segurança privada[2]. Trata-se de uma função pública, no caso policial, que na prática passou a ser um serviço comercializado privadamente. Entre os agentes do que podemos chamar de uma indústria da proteção é sabido que, no momento em que a vítima vai até a delegacia fazer o B.O., o mais usual é que o próprio policial já pergunte qual a seguradora e, em seguida, ofereça para a companhia seguradora os serviços de proteção de uma empresa recuperadora de veículos dele próprio ou parceira. Caso a vítima não tenha seguro, por sua vez, não é raro que os serviços de recuperação também sejam oferecidos diretamente à vítima, assim como a oferta de “seguros paralelos”, ou seja, formas de proteção, rastreamento e monitoramento veicular oficialmente não reguladas, as quais passaram a compor o portifólio de produtos de atores milicianos e, inclusive, se expandiram e passaram a roubar significativas parcelas do mercado das próprias seguradoras[3].

Para além da especificidade do mercado de recuperação de veículos roubados, as descrições acima são parte de um processo de empresarização das polícias mais amplo e ainda pouco discutido no debate público. Não é uma novidade no cotidiano da segurança pública brasileira o fato de que policiais ativos, aposentados ou fora de serviço são grandes empreendedores no vasto mercado de segurança privada e venda de serviços de proteção patrimonial dos mais diversos tipos. Também das forças policiais e militares do Estado, brotam especialistas em segurança privada, logística e análise e gerenciamento de risco. Os conhecimentos adquiridos em instituições públicas são precificados e comercializados no mercado de venda de proteção que atua nas zonas cinzentas entre o legal e o ilegal.

Como é praxe na segurança público-privada brasileira, há pelo menos três décadas, a formação militar e policial pública, assim como a legitimidade do uso da violência, é convertida em formas de acumulação privada[4]. Os orçamentos públicos da segurança são, em parte, destinados diretamente a fornecer mão de obra para os setores privados da segurança que, em termos de redes de relações, são sobrepostos às redes policiais.  Essas economias não são pequenas e compõem as bases materiais de atores cada vez mais politizados, de polícias cada vez mais autônomas politicamente e que ameaçam a estabilidade democrática do país.

Na dinâmica dos processos de empresarização das polícias, os indivíduos que operam na base deste mercado se sobrepõem às linhas que separam a segurança pública da privada e criam canais diretos de diálogo, de trocas de informações sensíveis, de conflitos e de negócios que pendulam entre práticas legais e ilegais, formais e informais, impondo desafios à soberania estatal em seu cerne, o qual diz respeito à moral pública e ao monopólio legítimo da força.

Precisamos, urgentemente, discutir formas mais eficazes de regular as fronteiras entre a segurança pública e a privada. Papel, este, delegado aos estados que criam suas próprias regulamentações e, no geral, fazem “vista grossa” sobre a situação.

[1] Todos os nomes presentes neste texto são fictícios. Os casos aqui apresentados foram retirados da minha tese de doutorado, intitulada “A Indústria da Proteção: sobre as interfaces entre seguros, segurança e seguridade”.

[2] Ver: “Segurança privada cresce 74% em 10 anos”, G1, 27/07/2012, último acesso em 29/09/2022, disponível em : https://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2012/07/seguranca-privada-no-brasil-cresce-74-nos-ultimos-dez-anos.html.

[3] Ver: “Milícias são aliadas de associações de proteção veicular”, Fenacor, 24/04/2019, último acesso: 28/09/2022, disponível em: https://www.fenacor.org.br/noticias/milicias-sao-aliadas-de-associacoes-de-protec.

[4] Ver: “Estatuto proíbe, mas policial usa brecha legal para ter empresa”, Folha de SP, 08/02/1998, último acesso em 08/03/2022, disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff08029801.htm#:~:text=H%C3%A1%20uma%20brecha%20na%20legisla%C3%A7%C3%A3o,acionista%2C%20cotista%20ou%20comandit%C3%A1rio%22. 

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