PL 1334/2025: a perigosa contradição de armar cidadãos aprovada na Câmara
Ao transformar cada veículo de um CAC em um potencial paiol móvel, o PL 1334/2025 não reduz a vulnerabilidade, mas converte seus proprietários em alvos de altíssimo valor para o crime organizado
Roberto Uchôa *
Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutorando em Democracia do Século XXI no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Em um movimento que desafia a lógica e o consenso científico sobre segurança pública, o Projeto de Lei nº 1.334/2025, que propõe armar cidadãos com um arsenal de guerra para sua defesa pessoal, deu um passo perigoso na Câmara dos Deputados. A Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO) aprovou a proposta, que concede a colecionadores, atiradores desportivos e caçadores (CACs) o direito de portar até duas armas de pequeno porte e um fuzil, todos “municiados, alimentados e carregados”, durante seus deslocamentos. A aprovação, formalizada em parecer da deputada Caroline De Toni (PL/SC), expõe um abismo alarmante entre as prioridades do país e a agenda legislativa, tratando um problema complexo com uma solução que agrava os riscos para toda a sociedade.
O parecer favorável ao projeto sustenta-se em uma argumentação frágil, que busca conferir “clareza normativa e segurança jurídica aos CACs”, alegando que a ausência de uma previsão legal expressa sobre o transporte de armas municiadas gera interpretações divergentes e insegurança. No entanto, essa busca por “segurança jurídica” para um grupo específico ignora completamente a insegurança coletiva que a medida promove. Ao mesmo tempo, a justificativa do projeto original revela sua mais profunda e trágica contradição. Para defender a necessidade de armar cidadãos com fuzis, o texto aponta a “grave crise de segurança pública” e os 46.328 homicídios de 2023. Utiliza-se, assim, o sintoma mais agudo da epidemia de violência, o homicídio por arma de fogo, como argumento para administrar uma dose maior do próprio veneno.
A literatura científica é robusta em apontar que a proliferação de armas não apenas falha em dissuadir o crime, como potencializa a letalidade de conflitos. O parecer da comissão ecoa o argumento do projeto ao afirmar que os CACs são um segmento “regulado e fiscalizado com rigor, cuja atuação não guarda relação direta com os índices mais elevados de criminalidade armada no país”. Cita dados para reforçar que a maioria das armas apreendidas em delitos tem origem ilícita, uma verdade que, paradoxalmente, esconde outra: o mercado ilegal é abastecido por armas que, em algum momento, foram legais. O aumento exponencial do arsenal em circulação, como o ocorrido no Brasil, inevitavelmente expande o universo de armas disponíveis para serem furtadas, roubadas ou desviadas. Ao transformar cada veículo de um CAC em um potencial paiol móvel, o PL 1334/2025 não reduz a vulnerabilidade, mas converte seus proprietários em alvos de altíssimo valor para o crime organizado.
Ademais, a proposta subverte completamente o conceito de “porte de trânsito”, originalmente concebido no Estatuto do Desarmamento como uma autorização para o transporte de um artigo desportivo, de forma segura (arma desmuniciada, separada da munição). O projeto de lei, agora com o aval da CSPCCO, transforma essa autorização logística em um porte de arma de guerra para defesa pessoal, desfigurando o espírito da lei.
Do ponto de vista prático, a proposta aprovada é irrealista. A ideia de que um civil, mesmo treinado, possa reagir a uma emboscada manejando duas pistolas e um fuzil pertence à ficção. Confrontos armados reais são eventos de curta duração e extremo estresse. A presença de um arsenal dessa magnitude cria uma falsa sensação de segurança que, na prática, aumenta o risco de uma reação desproporcional e letal. O uso de um fuzil em ambiente público eleva exponencialmente o perigo de danos colaterais.
A aprovação na Comissão de Segurança Pública é um sintoma preocupante do distanciamento entre parte do Legislativo e as políticas de segurança baseadas em evidências. Enquanto especialistas apontam para a necessidade de fortalecer a rastreabilidade, a fiscalização e a retirada de armas de circulação, a comissão opta por uma via que amplia a presença de armas de alta energia nas ruas. O parecer conclui que o projeto é “juridicamente adequado, legislativamente necessário e socialmente oportuno”, uma afirmação que ignora os apelos de organizações da sociedade civil, pesquisadores e uma parcela significativa da população que clama por mais segurança, e não por mais armas.
O PL 1334/2025, agora chancelado por uma comissão temática crucial, parte de uma premissa equivocada: a de que a segurança é um bem que pode ser individualmente adquirido pela força. A segurança pública, no entanto, é um dever do Estado e um direito coletivo. A decisão da CSPCCO de aprovar o projeto não apenas legitima uma proposta perigosa, mas também sinaliza um grave descompasso com as prioridades nacionais, entre as quais a proteção da vida deveria ser o valor inegociável. Cabe agora a outras instâncias do Congresso a responsabilidade de frear este retrocesso, reafirmando o compromisso com uma sociedade mais segura através de políticas racionais, e não do fomento a uma ilusória e arriscada autodefesa armada.
* O artigo foi originalmente publicado no link https://open.substack.com/pub/robertouchoa/p/pl-13342025-a-perigosa-contradicao?r=3224i8&utm_campaign=post&utm_medium=web&showWelcomeOnShare=true