Perícia e eleições: o Laudo Grafoscópico que pode ter arruinado a carreira política de um candidato em São Paulo
Os desdobramentos que podem advir do caso da elaboração de pseudolaudo estão relacionados aos âmbitos eleitoral, cível e criminal, mas o que resta constatado é um bom exemplo da contribuição da perícia para a resolução de casos
Cássio Thyone Almeida de Rosa
Graduado em Geologia pela UnB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
As eleições municipais de 2024 ocorreram em primeiro turno no último domingo, 6 de outubro. Resta ainda o segundo, que ocorrerá no próximo dia 27, apenas para aquelas cidades com mais de 200 mil habitantes, nos municípios que atendem a esse critério, e, é claro, nos quais o candidato vencedor no primeiro turno não tenha atingido mais de 50% dos votos.
Na última semana, no crepúsculo da primeira fase destas eleições, um fato repercutiu muito: um documento, datado de 19 de janeiro de 2021, divulgado pela campanha de Pablo Marçal, candidato à prefeitura paulistana, a saber, a imagem de um RECEITUÁRIO assinado por um médico, no qual o paciente Guilherme Castro Boulos é encaminhado a um médico psiquiatra, após atendimento em clínica particular, especificamente “MAIS CONSULTA CLÍNICA MÉDICA”. O documento atribuiu ao paciente um “quadro de surto psicótico grave, em delírio persecutório e ideias homicidas, apresentando período de confusão mental e episódio de agitação”. Menciona ainda “Exame Toxicológico (EXTERNO) apresentado por seu acompanhante, indica Positivo para benzoilmetilecgonina (COCAÍNA) 2.825 NG/MG 05ng/mg”.
Para entendermos os detalhes trazidos no documento, a substância benzoilecognina é um metabólito da cocaína e apresenta meia-vida de sete a nove horas, podendo ser detectada na urina a partir de duas a três horas do uso, e em até três a cinco dias depois de seu emprego.
Embora tratado como laudo, o documento em si não é tecnicamente isso, conforme se pode notar pela descrição apresentada, ainda que esse fato pouco importe. O tamanho do estrago que o documento causou ou poderia ter causado na campanha do então candidato Guilherme Boulos, até então empatado tecnicamente com o próprio Pablo Marçal e com Ricardo Nunes, é difícil de se mensurar, mas sua mera divulgação já caiu como uma bomba no pleito da capital paulista.
Bomba por bomba, o que se viu em seguida pode ser entendido como uma reviravolta, no qual o pretenso artefato acabou por explodir no colo de quem o plantava, gerando com isso outra repercussão bombástica: a constatação de que se tratava de um documento falso empregado pela campanha de Marçal.
Muito rapidamente, a mídia noticiou não apenas que o documento era falso, mas também que a Polícia Científica de São Paulo fora acionada e um Laudo Pericial Grafotécnico seria então divulgado.
A área pericial envolvida nesse caso é a Documentoscopia, âmbito no qual se inserem os exames em documentos dos mais diversos tipos e que inclui a grafoscopia, que é o ramo dedicado aos exames de lançamentos gráficos, assim como de assinaturas. O objetivo é sempre buscar demonstrar a autenticidade ou falsidade de um documento ou de uma assinatura. Além disso, é claro, existe a possibilidade também de se determinar a autoria do falsificador.
Esses exames baseiam-se em comparações. Para o cotejamento são necessários, assim, padrões que sejam reconhecidos como autênticos. Para assinaturas, empregam-se exemplares existentes, cuja autoria seja do titular ao qual se atribui uma assinatura questionada. Quando esse titular é vivo, a preferência é pela coleta de padrões obtidos diretamente do punho escritor do titular.
No laudo da Polícia Científica que examinou o documento apresentado pela campanha de Marçal, diante da impossibilidade de uma coleta, já que o médico a quem se atribuem a assinatura e autoria do RECEITUÁRIO, José Roberto Souza, faleceu em 2022, os peritos empregaram nos confrontos realizados nove padrões, sendo uma procuração, seis fichas de identificação civil, um pedido de passaporte comum e um boletim de identificação, todos contendo assinaturas originais e autênticas do médico em questão.
Vamos reproduzir aqui a conclusão a que chegaram os peritos relatores do Laudo Grafoscópico:
“É FALSA a imagem da assinatura em nome do médico “JOSÉ ROBERTO DE SOUZA”, lançada no receituário objeto de exame, descrito no capítulo “Peça de Exame”, posto que tal assinatura não apresenta as mesmas características gráficas dos exemplares observados nos documentos descritos no capítulo “Padrões de Confronto”.
A conclusão apresentada não deixa dúvidas: a assinatura (neste caso era uma imagem no documento questionado) é FALSA!
Importa ainda destacar que o trabalho pericial foi facilitado pelo próprio tipo de falsificação, que é denominado de falsificação sem imitação, já que a assinatura questionada e as assinaturas padrão não guardam entre si sequer uma semelhança formal, evidenciando tratar-se de punhos autores diversos. Nesse caso, o falsário sequer conhecia ou tinha à sua disposição a assinatura do médico por ele imitada.
Em um trecho do laudo oficial, os peritos comentam:
“A simples inspeção ocular das figuras acima demonstra as divergências observadas entre a assinatura questionada e os padrões de confronto, evidenciando a sua procedência de natureza espúria”
Em outras palavras, basta olhar e notar as divergências significativas que apontam a falsidade da assinatura. A estratégia empregada foi, antes de mais nada, amadora e grosseira. Alguns memes que circularam comparavam o então candidato envolvido a Dick Vigarista, vilão trapalhão do desenho animado Corrida Maluca que, ao executar seus planos mirabolantes ao lado do cão Muttley, sempre acabava mal. O seguinte trecho, extraído do laudo, ilustra isso:
“Ademais, no corpo do receituário objeto de exame, foi verificado que o número do Registro Geral (RG) relacionado ao Paciente GUILHERME CASTRO BOULOS” possui um dígito adicional, sendo observados dois dígitos verificadores em vez de somente um, que é o padrão estabelecido para a Carteira de Identidade expedida pelo Governo do Estado de São Paulo”.
Os desdobramentos do que pode vir deste caso estão relacionados aos âmbitos eleitoral, cível e criminal, mas o que fica de constatação do fato é, para nós, um bom exemplo da contribuição da perícia para a resolução de casos, seja de que tipo eles forem!