Pensar uma política de segurança antirracista #1
A educação em relações raciais para os policiais se concentra no combate a preconceitos pessoais, mas não prepara as mudanças organizacionais necessárias. Precisamos ir além disso e pensar num programa de múltiplas estratégias
Jacqueline Sinhoretto
Socióloga e professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos
O tema do racismo institucional na segurança pública tem ocupado espaço central nas discussões sobre o papel da polícia e os modelos de policiamento. O Brasil entrou muito tarde neste debate, tendo sido fiel seguidor da agenda de direita para o setor.
Ainda que governos de centro-esquerda tenham produzido a legislação penal e iniciativas locais de segurança cidadã, em matéria de programas democráticos para o policiamento avançou-se muito pouco. Aprofundou-se uma concepção militarizada, calcada no uso máximo da força, em armamentos, em tecnologias de policiamento, os quais têm reforçado os resultados de produção desigual e violenta na segurança pública. A isto dá-se o nome de racismo institucional.
A sociedade civil tem avançado mais do que os entes estatais e, pouco a pouco, explicitado os pontos de um plano de ação discutido internacionalmente, já que o racismo é parte das instituições forjadas na modernidade. Verdade em todo o mundo, na América desenvolveu-se a corrente mais violenta, formada pela colonização e a escravização, com migração forçada, destruição física e cultural dos africanos e descendentes e genocídio indígena. Esses processos nunca terminam de produzir seus efeitos nos países americanos, onde tribunais, leis, polícia e prisão serviram, durante séculos, exclusivamente aos fins da colonização.
Fruto da minha experiência de trabalho, ouvindo, lendo e vendo policiais, acadêmicos e lideranças antirracistas, começo a sistematizar algumas propostas de um programa antirracista na segurança pública, que desenvolverei em vários artigos.
É necessário começar em algum lugar, sem esquecer que falamos de processos sistêmicos, organizacionais, culturais e esquemas de pensamento e ação, tecnologias, interações interpessoais. Desta forma, é preciso pensar num programa de múltiplas estratégias. A educação policial é sempre mencionada como indispensável, pois ela forma um quadro de interpretação e programas de ação, cabendo a ela construir uma perspectiva profissional que substitua o senso comum. Ocorre que, muitas vezes, a educação em relações raciais para os policiais se concentra em combater preconceitos pessoais (o que também é necessário), mas não prepara para as mudanças organizacionais necessárias. É preciso pensar a educação antirracista como um processo de mudança cultural e organizacional, não apenas como um guia de comportamento individual.
É necessário conceber que a mudança depende de inovação também nos processos de recrutamento, promoção e criação de lideranças corporativas para pensar as estratégias organizacionais de desconstrução do racismo. Se as polícias brasileiras têm uma parcela significativa de trabalhadores descendentes afro-indígenas, é fácil verificar que as cúpulas e as lideranças são resultado de um filtro que favorece a ascensão de homens, brancos, cristãos e que nenhuma organização policial brasileira dispõe de um programa de recursos humanos que favoreça a diversidade étnico-racial, de gênero, de orientação sexual e religiosa.
O fundamento da discussão antirracista é o desenho dos objetivos e das formas de policiar. Uma parte disso se relaciona ao desenho das políticas de segurança pública e da introdução de abordagens multidisciplinares dos conflitos. Essa discussão veio ao grande público sob o slogan de reduzir o tamanho da polícia e reduzir seu custo, no momento das revoltas populares. O que está em jogo, para além do jargão, é uma concepção de segurança pública pensada a partir da especificidade dos conflitos violentos que atingem as populações. No paradigma colonialista, racista e patriarcal, as pessoas afro-indígenas não são pensadas como sujeitos de direitos à segurança (às vezes nem são vistas como pessoas), mas como culpados da violência que os atinge. No paradigma antirracista, trata-se de partir da especificidade dos conflitos e desenhar planos de intervenção para reduzir o uso da violência, pensando a polícia como parte da solução, componente de uma rede de serviços de públicos multidisciplinar. Hoje a polícia é protagonista absoluta das políticas de segurança, mas a luta dos movimentos sociais e pesquisas de opinião têm mostrado que a população negra, jovem e das periferias não se sente protegida, mas ameaçada pela presença da polícia. Os números da violência policial falam por si.
Esta mudança de paradigma pede simultaneamente uma especialização cada vez maior da polícia em conflitos complexos e protocolos de ação integrada com assistência social, planejamento urbano, escola, saúde, habitação, políticas de emprego e renda, cultura. No paradigma atual, a polícia pensa a si mesma como protagonista e quer sobrepor seu saber e seus métodos sobre as outras áreas e os outros profissionais, a ponto de entrar nas escolas para dar aulas ou de querer regrar toda a vida comunitária. Um paradigma antirracista pensa as comunidades como protagonistas de seus direitos e os serviços públicos como aliados do desenvolvimento humano. É tão fácil escrever estas palavras como é difícil imaginar que uma corporação vá ceder voluntariamente espaço e recursos.
Pense, então, nos policiais cujo sonho é fazer uma faculdade de psicologia, serviço social, administração, saúde ou formação voltada à mediação de conflitos, intervenção em violência doméstica, abuso de substâncias psicoativas, ações comunitárias. Na cabeça de um incontável número de policiais, a discussão sobre a redução do tamanho das polícias e da mudança do enfoque do trabalho seria facilmente resolvida se os concursos de carreiras ligadas à política de prevenção da violência fossem tão frequentes, tivessem estabilidade e pagassem os salários que as carreiras policiais pagam.
Este artigo deu início a um debate que seguirá nos próximos textos.