A cor da questão 24/04/2024

PEC das Drogas e o quanto há entre o jurídico e o político

Pautar o debate sobre a criminalização das drogas como se de seletividade penal não se tratasse é consentir com a perpetuação do racismo estrutural e institucional, com a criminalização da pobreza, com a prisão como mecanismo de expurgo dos indesejados socialmente

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Juliana Brandão

Doutora em Direitos Humanos pela USP e pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

“Diálogo institucional harmônico” foi o que constou na PEC das Drogas como seu objetivo motivador, externalizado na justificativa dessa proposta de emenda à Constituição. Recuperando o Recurso Extraordinário (RE 635659/SP), julgado no STF em 06/03/2024 e com repercussão geral reconhecida (Tema 506), a PEC 45/2023, aprovada pelo Senado, em 16/04/2023, em primeiro e em segundo turnos, respectivamente com 53 e 52 votos a favor, segue agora para a Câmara dos Deputados, onde precisa atingir o quórum mínimo de 3/5, também em dois turnos, para ser aprovada.

A alteração veiculada pela PEC 45/2023 insere o inciso LXXX ao artigo 5º da Constituição Federal e passa a considerar crime a posse e o porte de entorpecentes e drogas afins, independentemente da quantidade. Pouco mais de um mês antes, no RE 635659/SP, o Supremo assentara o critério de porte, para aquele indivíduo em posse de até 10 gramas de maconha, vinculando-o ao enquadramento previsto nos incisos do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11343/2006).

Nesse movimento, em que o Judiciário, no vácuo da produção legislativa, instado a se manifestar em um caso concreto, estabelece um parâmetro para o enquadramento da tipificação de porte de entorpecente – e aqui é salutar o destaque que a decisão judicial em referência apenas cuidou do porte de maconha – estaríamos diante de uma interferência indevida na função do Legislativo? Frente a isso, se o Legislativo “reage” normatizando a matéria, temos a manifestação de sua função típica, independentemente da motivação que a tenha inspirado?

Tomando a discussão em abstrato, a teoria constitucional nos leva para o debate dos poderes do Estado, da harmonia entre esses mesmos poderes e até, considerando a tensão que se estabelece nas fronteiras do Legislativo e do Judiciário, para a discussão da judicialização da política. Contudo, nem a produção legislativa, tampouco a produção jurisprudencial estão isentas dos atravessamentos do cotidiano e da vivência em sociedade. Aqui, no que concerne à Lei de Drogas, as díades criminalização/descriminalização, porte/tráfico, usuário/traficante convocam e expressam, em sua interpretação, concepções de segurança pública e escolhas de política criminal.

A PEC 45/23, segundo seus subscritores, vai ao encontro do direito à saúde, dialoga com a hediondez do tráfico e, no campo da segurança pública, está em sintonia com a incumbência da Polícia Federal de prevenir e reprimir o tráfico de entorpecentes. Entretanto, é silente quanto à seletividade penal, quanto à filtragem racial, quanto ao encarceramento daí derivado que atinge de forma contundente a população negra. E, inclusive, segundo dados da Secretaria de Políticas sobre Drogas do Ministério da Justiça e Segurança Pública (Senad/MJSP, 2023), o tráfico representa uma das maiores causas de prisão de mulheres, chegando a 54% dos casos, sendo que para os homens atinge 27,65%.

Como tratado em “Baseado em dados: como diferenciar usuários e traficantes de drogas? Uma defesa da adoção de critérios objetivos de quantidade.” (Fonte Segura, Edição 226), na medida em que a lei não fixa parâmetros para caracterizar objetivamente o tráfico de drogas e diferenciá-lo do porte, os dados evidenciam que a tipificação do tráfico se ancora no perfil social, econômico e racial, e leva em conta o local onde ocorreu o flagrante.

Em 2016, o Relatório Final da CPI Genocídio da Juventude Negra – conduzida pelo mesmo Senado que agora pauta a PEC das Drogas – registrou, com relação ao tráfico de drogas e à violência contra a juventude que a “Guerra às drogas”, pautada sobretudo pelo confronto do Estado junto a comunidades, que os jovens, em sua grande maioria negros, foram os mais vitimizados. Nessa toada, passa a ser sinônimo de eficiência do poder público o extermínio físico dos corpos negros – traduzidos no encarceramento em massa, bem como na naturalização do aumento persistente da letalidade negra – encobrindo o racismo que é dissimulado, no contexto brasileiro, na existência de normas que vedam a discriminação.

Em 2023, no reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional ( ADPF 347), o STF reconheceu uma grave e massiva violação de direitos fundamentais dos presos – e estamos falando do mesmo Judiciário que atua de forma hesitante – isso porque se vai de encontro ao vazio legislativo da Lei de Drogas,  segue produzindo e reproduzindo decisões, como o caso emblemático de Rafael Braga (2016), condenado com base em abordagem policial, sem testemunhas, por tráfico de entorpecentes, com 0,6g de maconha e 9,3g de cocaína.

Desse modo, o que superficialmente aparece como um confronto que envolveria as fronteiras entre o jurídico e o político, camufla, em verdade, uma escolha. Dito de outro modo, pautar o debate sobre a criminalização das drogas – e é disto que estamos falando na PEC 45/23 – como se de seletividade penal não se tratasse, é consentir com a perpetuação do racismo estrutural e institucional, com a criminalização da pobreza, com a prisão como mecanismo de expurgo dos indesejados socialmente.

O timing da política pode se perder e ser capturado por disputas partidárias. O timing do jurídico pode se esvaziar, em debates de formalidades processuais, que sequer alcançam o cerne da questão.

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