Para combater o tráfico de armas é preciso ir além
Enquanto não houver a compreensão de que é essencial mapear os caminhos que as armas e munições percorrem até chegarem aos criminosos, não haverá melhora. É necessário criar uma política nacional de combate ao tráfico de armas de fogo e munições
Roberto Uchôa
Policial federal, doutorando em Democracia do Século XXI na Universidade de Coimbra e integrante do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
No último dia 21 de maio, a Polícia Federal deflagrou duas operações, uma em São Paulo e outra na Bahia. Ambas tiveram como alvo organizações criminosas envolvidas no tráfico ilícito de armas de fogo e munições. Embora esse tipo de crime não seja novidade, sendo relativamente comum no contexto da segurança pública do país, é importante destacar que desde a mudança na política de controle de armas durante o governo Bolsonaro, essas atividades parecem ter se intensificado. Isso se deve, em grande parte, ao aumento de registros de pessoas como CACs (colecionadores, atiradores e caçadores).
Foi exatamente o que aconteceu em São Paulo. A operação “Baal”, deflagrada pela Polícia Federal e pelo Ministério Público de São Paulo, teve como alvo uma organização criminosa que desviava armas adquiridas legalmente para serem usadas em ações criminosas do tipo “novo cangaço”. Trata-se de modalidade criminosa na qual quadrilhas utilizam armas e veículos para sitiar cidades de pequeno porte, com o objetivo de roubar caixas eletrônicos, cofres de bancos e carros-fortes.
Segundo os investigadores, os criminosos aproveitavam as facilidades de acesso a grandes quantidades de armas e munições permitidas aos CACs para adquiri-las legalmente e, posteriormente, repassá-las ao PCC. Assim, a organização direcionava o material para ser utilizado em ações criminosas em todo o país. Entre os presos na operação, estavam quatro pessoas registradas como CACs, que eram responsáveis pela aquisição de armas e munições para o PCC.
Já a operação “Fogo Amigo”, conduzida pela Polícia Federal e pelo Ministério Público da Bahia, revelou um esquema de desvio de armas e munições para criminosos que ia um pouco além. Assim como na investigação de São Paulo, ficou claro que os criminosos aproveitaram registros de CACs para adquirir armas e munições legalmente e, posteriormente, utilizá-las em ações criminosas. No entanto, neste esquema, que, segundo os investigadores, era liderado por policiais militares, também havia o envolvimento de comerciantes.
Segundo as investigações, policiais militares, CACs, empresários e lojas de comercialização de armas, munições e acessórios formavam uma organização criminosa especializada na venda ilegal de armas e munições para facções em Alagoas, Bahia e Pernambuco. De acordo com as autoridades, os investigados recrutavam pessoas sem instrução, geralmente da zona rural e sem antecedentes criminais, para que se tornassem CACs, arcando com todos os custos do processo. Após a aquisição das armas, essas pessoas repassavam o material aos integrantes da organização e registravam um falso furto na Polícia Civil. Para dificultar a investigação, os criminosos raspavam ou modificavam os números de série das armas, dificultando a identificação do comprador e a descoberta do esquema em caso de apreensão.
Contudo, a quadrilha, supostamente chefiada por policiais militares que foram presos, não se limitava ao desvio de novas armas adquiridas através de registros de CACs. Os policiais envolvidos no grupo criminoso também desviavam armas arrecadadas em operações policiais. Em vez de apresentarem essas armas na delegacia para apreensão, os policiais as revendiam a facções criminosas.
Um dos investigados foi um sargento da PM de Petrolina (PE), que movimentou aproximadamente R$ 2 milhões em um período de pouco mais de seis meses entre 2021 e 2023, segundo o Coaf. Um valor totalmente incompatível com os rendimentos de um sargento da Polícia Militar. Além disso, de acordo com um dos investigados que firmaram acordo de delação premiada, o grupo comandado por esse sargento, e do qual também fazia parte um capitão, chegava a vender cerca de 20 armas de fogo por mês.
Nos últimos anos, tem se tornado cada vez mais comum acompanhar nos noticiários informações sobre investigações policiais que revelam como a facilitação do acesso a grandes quantidades de armas e munições para CACs possibilitou que criminosos conseguissem acesso a esses materiais. As formas como isso ocorreu têm variado, mas é evidente que a mudança na política de controle sobre a circulação de armas no país, vigente entre 2019 e 2023, facilitou o desvio de armas para os mercados ilegais. No entanto, não pode ser considerada a única responsável, nem a sua reversão como a solução definitiva para o problema.
Enquanto novas práticas se fortalecem, como o desvio de armas adquiridas legalmente em nome de CACs, outras mais antigas e conhecidas, como o desvio de armas arrecadadas em operações policiais e revendidas a criminosos, desvios de arsenais públicos e o transporte de armas e munições contrabandeadas, continuam a ocorrer. Isso evidencia que o problema do tráfico de armas no país tem se agravado ao longo do tempo.
É preciso reconhecer o trabalho de algumas instituições no combate a esse tipo de atividade, mas também é necessário apontar a falta de centralidade que o tema tem tido na pauta da segurança pública. Um sinal claro dessa falta de prioridade é que apenas os estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo possuem delegacias especializadas no combate ao tráfico de armas.
Em um país onde mais de 70% dos homicídios são cometidos com o uso de armas, onde grandes cidades são constantemente palco de conflitos armados entre organizações criminosas e a polícia, e onde cidades de pequeno porte são sitiadas por ações criminosas, não ter o combate ao tráfico de armas e munições como uma das pautas principais é um sinal de que há algo muito errado.
Como evidenciado nas operações citadas, a volta da restrição ao acesso a armas e munições de interesse das organizações criminosas, como fuzis e pistolas, foi necessária e deve ser reconhecida. No entanto, é preciso fazer muito mais. Enquanto não houver a compreensão de que é essencial mapear os caminhos que as armas e munições percorrem até chegarem aos criminosos, não haverá melhora. É necessário reconhecer a existência do problema e criar uma política nacional de combate ao tráfico de armas de fogo e munições.
Isso vai além do mero endurecimento no acesso legal. É preciso implementar novas técnicas de identificação de armas que facilitem o rastreamento, numerar as munições para que se possa apurar o local dos desvios, promover a troca de informações entre as instituições e principalmente fazer com que a indústria armamentista nacional entenda que um maior controle será benéfico para todos. Somente com uma abordagem abrangente e coordenada será possível enfrentar eficazmente o tráfico de armas e reduzir a violência armada no país.