Múltiplas Vozes 07/02/2024

Panorama da letalidade policial no Amapá

O cenário desafiador indica a urgência de se reavaliar as políticas de segurança do estado e efetuar mudanças na forma como os recursos materiais e humanos são empregados, buscando uma redução no uso da força letal em prol de abordagens que primem pela proporcionalidade, eficácia e preservação da vida

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Ariadne Natal

Doutora em sociologia, pesquisadora de pós-doutorado do Peace Research Institute Frankfurt (PRIF)

Os dados de 2023 sobre mortes por intervenção policial, publicados recentemente pelo Sinesp, revelam que o Amapá permaneceu, pelo segundo ano consecutivo, como o estado com a maior taxa de letalidade policial no Brasil. Esse indicador alarmante, que mostra as forças policiais do Amapá como as mais letais proporcionalmente no país, exige uma análise detalhada para entender suas nuances e implicações. Em 2023 foram registradas 186 pessoas mortas pelas polícias do Amapá, um aumento de 44% em relação ao ano anterior. Esse crescimento ocorre em um contexto no qual a letalidade policial no Brasil apresentou uma queda de 2,3%.

Geralmente, estados com menor população e número absoluto de casos relativamente pequeno, como o Amapá, não são o foco principal dos analistas. No entanto, é crucial entender que mesmo um percentual pequeno do total nacional – cerca de 3% no caso do Amapá – merece uma análise contextualizada para uma compreensão adequada das tendências subjacentes que, não raras vezes, reproduzem dinâmicas presentes em outras unidades federativas. Embora análises com números absolutos pequenos exijam cautela, uma vez que pequenas oscilações podem levar a variações percentuais significativas, é importante não desconsiderar esses cenários, mas sim buscar qualificar as informações e analisá-las num contexto para leituras mais precisas.

Os dados relativos de letalidade policial por habitantes e a série temporal deixam claros a magnitude do problema no Amapá e seu descolamento da tendência nacional. Em 2023, a taxa foi de 25 mortos pela polícia para cada 100 mil habitantes, um número significativamente mais alto do que a média nacional, de aproximadamente 3 por 100 mil. Essa disparidade sugere uma dinâmica única no estado, que se desviou da média nacional depois de 2015 e se agravou sobretudo nos últimos cinco anos.

Fontes: Dados do Sinesp, Fórum Brasileiro de Segurança Pública e IBGE

Profissionais de segurança pública do Amapá, entrevistados durante um trabalho de campo em 2022, relataram uma mudança significativa nas dinâmicas criminais na última década. O estado, tem se tornado um ponto focal para o crime organizado, sendo considerado por eles como uma espécie de entreposto para rotas nacionais e internacionais do tráfico de drogas. Isto se dá, sobretudo, devido à sua posição estratégica na foz do Rio Amazonas e proximidade com locais de produção de drogas de alto valor agregado, além de sua área de fronteira com a Guiana Francesa ao norte do território. Tal dinâmica ensejou o estabelecimento no estado de facções e grupos organizados com conexões externas, importando para o Amapá conflitos e disputas violentas já presentes no restante do país e que impactariam diversos índices de criminalidade.

De fato, os dados mostram um aumento expressivo nas taxas de autuação por tráfico de drogas, seguindo uma curva de tendência similar à da letalidade policial, com um crescimento notável a partir de 2019. Em 2022 o estado teve em média uma pessoa morta pelas polícias para cada 6 casos de tráfico de drogas registrados. Isso levanta questões sobre a relação entre as estratégias de combate ao tráfico e o aumento da letalidade, sugerindo a necessidade de uma análise mais aprofundada a respeito das políticas de segurança adotadas pelos gestores locais.

Já com relação às taxas de homicídios, os dados indicam uma certa estabilidade no índice (com algumas oscilações pontuais) se mantendo em um patamar bastante alto ao longo do tempo, com uma taxa de 41 mortes por 100 mil habitantes em 2023, frente à média nacional de 18 por 100 mil. Já outras modalidades criminais relacionadas ao patrimônio como roubos em geral e também roubo e furto de veículos apresentaram uma tendência de queda no mesmo período que pode ser explicada em parte pela pandemia em 2020, mas que não retorna aos mesmos patamares anteriores depois dela. Este contraste reforça a complexidade do cenário de segurança pública no estado, onde a letalidade policial aumenta apesar da redução de outras formas de criminalidade.

Fontes: Dados do Sinesp, Fórum Brasileiro de Segurança Pública e IBGE

Temos então um contexto no qual a principal tendência criminal em ascensão é aquela cujo registro está diretamente relacionado à produtividade policial, principalmente às ações das polícias militares e autuações realizadas por meio de operações e flagrantes. E, segundo os policiais entrevistados, é justamente nessas dinâmicas que os casos de letalidade policial acontecem, segundo eles como uma forma de proteção perante as injustas agressões de bandidos que estão cada vez mais audaciosos no enfrentamento aos policiais.

Entretanto, a análise da letalidade policial em conjunto com outros dados indica que o uso da força letal tem sido empregado de maneira excessiva e desproporcional. Embora pareça haver um contexto de crescimento de ações do crime organizado, as respostas e soluções apresentadas pelas instituições de segurança do estado estão em descompasso com as ameaças registradas. Entre 2015 e 2023 foram 880 pessoas mortas pelas forças policiais no Amapá, face a 11 mortes violentas de profissionais da segurança pública, o que indica uma proporção de 80 mortes de civis para cada policial morto. Além disso, o número de pessoas mortas pela polícia representa atualmente 36% das mortes violentas que ocorrem no estado, um percentual que era de 7% em 2015 (quando outros crimes violentos, como roubos e homicídios já eram altos).

A alta letalidade policial se mantém como um dos principais desafios para a segurança pública no Amapá. Os dados indicam que nos últimos anos esse fenômeno tem apresentado um crescimento vertiginoso e desproporcional e, ainda, que tal dinâmica está relacionada sobretudo às estratégias escolhidas pelo Estado no combate ao tráfico de drogas. O cenário desafiador indica a urgência de se reavaliar as políticas de segurança do estado e efetuar mudanças na forma como os recursos materiais e humanos são empregados, buscando uma redução no uso da força letal em prol de abordagens que primem pela proporcionalidade, eficácia e preservação da vida.

 

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