Pactuar o uso da força: a intentona golpista e a ADPF das favelas
Estamos em momento favorável para que o governo federal faça cumprir os compromissos histórico assumidos frente aos que mais sofrem com os efeitos da violência letal, questão tão decisiva para a segurança pública quanto para a democracia brasileira
Daniel Hirata
Coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF)
Carolina Grillo
Coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF)
Diogo Lyra
Coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF)
Renato Dirk
Coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF)
Pela evidente gravidade, a fracassada tentativa de golpe de estado que ocorreu no dia 8 de janeiro foi e será durante muito tempo objeto de interpretações sob diferentes ângulos. Em adição ao que já foi dito, escrito e debatido nas últimas semanas, parece-nos importante apontar os vínculos entre a intentona golpista e o caso da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 635 que, desde 2019, tramita no Supremo Tribunal Federal. A chamada “ADPF das favelas” tornou-se amplamente conhecida em 2020 por conta da decisão do STF que restringiu as operações policiais no Rio de Janeiro. Contudo, gostaríamos de chamar atenção aqui para o fato de ela ser uma arena pública de vanguarda sobre a questão do controle democrático da atividade policial. No âmbito da ADPF 635, tem sido debatida e estabelecida uma série de medidas visando a obrigar as polícias (no caso as do Rio de Janeiro) a respeitar o ordenamento democrático e agir dentro dos limites legais, sob a fiscalização da sociedade e das instituições de Estado competentes. Se, à primeira vista, tal questão pode parecer alheia à intentona, a explicita conivência e participação de policiais militares do Distrito Federal na tentativa de golpe demonstra a urgência de submeter as polícias aos controles democráticos.
A pactuação do uso da força é um tema clássico da teoria política e, de fato, uma exigência elementar de qualquer governo civil, condição de possibilidade de regimes democráticos e da instituição do Estado de Direito. De forma direta e bastante clara: trata-se da subordinação do poder armado ao poder político, da submissão das organizações coercitivas estatais à soberania popular e os governos eleitos e da instalação de uma cadeia de comando e controle efetiva do executivo em relação às forças da ordem. Contudo, apesar de elementar, no Brasil sempre foi desafiador construir acordos livres de chantagens dos poderes armados e mecanismos institucionais que permitam o adequado uso da força estatal. Ao mesmo tempo, esse desafio acabou por se tornar um bloqueio para que a política e a justiça sejam as formas de mediação dos nossos conflitos, ou seja, que a força não se sobreponha à palavra e à lei. Todos os clássicos do pensamento social e político brasileiro, de diferentes maneiras, já apontaram que a formação estatal e societária brasileira foi sempre problemática em lidar com o jugo das armas, e boa parte dos problemas relacionados às nossas desigualdades estruturais e persistentes mantém relação de proveniência e reprodução com esta questão.
No Rio de Janeiro o problema é tão grave que nos parece óbvio que o golpe teria sido bem-sucedido caso a capital federal fosse ainda em terras fluminenses. As combalidas instituições públicas do Rio de Janeiro sofrem de uma gravíssima autonomização, para não dizer tutela, das forças policiais. Isto foi acentuado desde as eleições de 2018, quando o atual (e reeleito) governo de extrema direita chegou ao Palácio Guanabara. Dentre alguns (poucos) fatos relevantes desta ascensão, cabe destacar que: (1) já nem existe mais a Secretaria de Estado de Segurança Pública e, por conseguinte, tampouco o comando dos poderes eleitos sobre as forças policiais; (2) no ano passado aprovou-se uma lei orgânica da Polícia Civil que aprofundou o seu insulamento institucional e sua blindagem contra a influência do governador; (3) nesse ano as indicações aos órgãos de controle externo (como o Ministério Público) foram submetidas a intervenções políticas visando a obstruir o trabalho de fiscalização das instituições de Estado. Ademais, acrescente-se que a força política das forças policiais na ALERJ nunca foi tão grande, incluindo de forma assustadora dentre os representantes eleitos figuras como policiais youtubers (ou seus parentes) investigados por uma multiplicidade de graves crimes.
Neste quadro político, não é de se surpreender que desde 2019 tenhamos uma média anual de 1277 mortes por intervenção de agentes de estado na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, face a uma média de 756 nos dez anos anteriores; que também as milícias tenham crescido exponencialmente, e passado a controlar metade de todos os territórios sob domínio territorial armado, nos quais atuam por meio de práticas de extorsão dos moradores e de extração da riqueza socialmente produzida. Brutalidade policial e milicialização de territórios e populações são as duas faces mais representativas da não devida pactuação do uso da força, através das quais o autoritarismo cresce a passos largos, corroendo a institucionalidade democrática e reproduzindo as suas bases sociais e econômicas.
Neste cenário desolador, a ADPF das favelas emergiu como uma resposta judicial a esta escalada autoritária e criminal. De fato, com a ascensão da extrema direita, as mediações políticas foram sendo fechadas, ou seja, a possibilidade do diálogo entre governo do Estado e sociedade civil foi se tornando cada vez mais insustentável. O Conselho Estadual de Segurança Pública, atualmente sem nenhuma representatividade participativa, com conselheiros indicados pelo próprio governador é o retrato mais acabado desse processo. Deste ponto de vista, a sensibilidade do STF para a gravidade da situação foi enorme e, como reza o ordenamento jurídico, atuou como fiador da Constituição. De seu lado, as autoridades políticas e policiais vêm desrespeitando a restrição das operações policiais, assim como as cautelas determinadas pelo STF quando da realização de tais ações, em cenário que lembra indiretamente os ataques às instituições da intentona golpista. Apesar disso, é inegável que muitas conquistas foram realizadas nestes quase quatro anos da ADPF das favelas, muito se espera do recém-criado Observatório Judicial da Polícia Cidadã, no âmbito do CNJ, assim como do plano de redução da letalidade policial a ser homologado em breve e no qual constam contribuições das várias partes envolvidas no processo.
O mais importante da experiência em construção da ADPF das favelas, e que deveria ser seguido como exemplo ao que se deveria seguir como resposta à intentona, é que se trata de uma arena pública efetiva, com presença das várias partes envolvidas na questão da pactuação do uso da força: autoridades políticas e policiais, organizações de direitos humanos, pesquisadores e, sobretudo, movimentos de favela e de familiares de vítimas da violência de Estado. O governo federal tem apresentado posições firmes e importantes na responsabilização dos envolvidos na tentativa de golpe, sobretudo do ponto de vista penal e institucional. Contudo, para que no médio prazo a questão de fundo possa ser enfrentada, seria desejável a criação de espaços que incluam a sociedade civil no processamento institucional dos conflitos que envolvem a violência de estado e de construção de alternativas à gravíssima situação que envolve o uso da força no Brasil. Espera-se que essa lamentável tentativa de golpe possa servir para que, finalmente, se discutam e implementem medidas cujo repertório necessariamente passem pela criação de uma instância civil do controle democrático das polícias. Os exemplos internacionais são bastante abundantes e bem-sucedidos. Estamos em momento favorável para que o governo federal faça cumprir os compromissos histórico assumidos frente aos que mais sofrem com os efeitos da violência letal, questão tão decisiva para a segurança pública quanto para a democracia brasileira. A ADPF das favelas deve servir de parâmetro sobre como pactuar, o que só se pode fazer com a participação de todos os envolvidos.