Os riscos da concentração do transporte de cargas em rodovias para a segurança pública no Brasil
A PRF e PF são demasiado autônomas em relação ao Ministério da Justiça, e essa independência pode significar a tomada de posição em favor de uma gestão, em detrimento do cumprimento da ordem
TÚLIO KAHN
Consultor sênior na Fundação Espaço Democrático e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Durante o episódio do “caminhonaço”, em 2018, escrevi um breve artigo sobre os riscos para a segurança representados pela concentração do transporte rodoviário de cargas no Brasil: uma única categoria profissional, de forma espontânea ou orquestrada, pode em poucos dias desorganizar a distribuição de produtos básicos no país.
Aproveito para relembrar o artigo neste momento em que vemos uma nova paralisação promovida pelo setor, em protesto contra o resultado das eleições. Acrescentaria à reflexão também um outro risco: diferente de 2018, a PRF, órgão que deveria atuar para o restabelecimento da ordem, dá mostras de solidariedade ao movimento. Tanto a PRF quanto a PF são demasiado autônomas com relação ao Ministério da Justiça e essa independência pode, como agora, significar a tomada de posição em favor de uma gestão, em detrimento do cumprimento da ordem. Um eventual futuro Ministério da Segurança, já prometido, pode ajudar a recolocar na linha essas instituições e é preciso pensar o papel da Secretaria Nacional de Segurança nessa linha de subordinação.
No artigo de 2018, dizíamos que estratégias de segurança precisam conhecer e levar em consideração o grau de concentração ou dispersão dos fenômenos. Esse grau de concentração maior ou menor pode ser vantajoso ou desvantajoso e oferecer riscos ou oportunidades maiores ou menores.
Explicando o raciocínio abstrato: há muito se sabe que vários fenômenos criminais se manifestam de maneira concentrada: uma pequena quantidade de locais apresenta uma concentração enorme de crimes (hot spots); alguns dias e horários apresentam uma concentração desproporcional de crimes (hot times); alguns poucos criminosos bastante produtivos são responsáveis por uma quantidade grande de crimes, e assim por diante.
Essas concentrações seguem a distribuição de Pareto e do ponto de vista da estratégia de policiamento oferecem vantagens e oportunidades. Não preciso alocar meus recursos policiais limitados em todos os locais e horários e posso otimizar o seu uso alocando para as ruas e horários de maior incidência. Posso focar a investigação num grupo menor de criminosos muito produtivos, na impossibilidade de investigar a todos. Sim, é verdade que nem todos os locais serão policiados igualmente e nem todos os crimes investigados igualmente. Num contexto de escassez de recursos, contudo, essa é a estratégia maximizadora ou a que mais reduz a criminalidade. Ao contrário do ditado popular, nessas situações vale a pena apostar uma grande quantidade de fichas num único cavalo.
Por outro lado, os fenômenos do aumento dos preços dos combustíveis e da consequente greve dos caminhoneiros ilustram que “concentrações” podem também ser perigosas para a segurança nacional. Nessas situações “monopolistas”, a estratégia recomendada é reduzir o risco através da dispersão. Esse raciocínio é válido para diversos contextos: uma empresa que depende de um único ou poucos clientes é muito mais exposta ao risco do que outra que conta com clientes pulverizados. Investir num único ativo financeiro é muito mais arriscado do que investir numa carteira diversificada. A Arpanet, antecessora da internet, foi uma rede de origem militar concebida de forma espalhada por diversos hubs e por pacotes de dados, para evitar a interrupção da comunicação em caso de ataque. Um país com uma pauta limitada de exportações é muito mais afetado por uma crise setorial.
A crise de maio (ou caminhonaço) não teria sido tão aguda se nossa matriz energética não dependesse tanto dos combustíveis fósseis ou se o transporte de mercadorias não dependesse tanto de caminhões e rodovias. Essa dependência ou concentração tem impactos muito mais acentuados na economia e na sociedade no caso de choques como a alta internacional do dólar ou do barril de petróleo ou de uma greve nos transportes. Os governos e órgãos de segurança perceberam como é fácil parar o país com a paralisação de apenas um setor central da economia. E o grande impacto do preço dos combustíveis fósseis e do transporte rodoviário na inflação, no humor da população e na política.
Essas lições da greve dos caminhoneiros têm implicações (ou deveriam ter) nas estratégias de segurança de curto e de longo prazo. No curto prazo, seria importante identificar e monitorar todas essas “concentrações” e “dependências” que podem parar o país inteiro, imobilizando apenas algumas categorias profissionais, instalações ou equipamentos.
A pirâmide de Maslow é utilizada na psicologia para sugerir que necessidades de nível mais baixo devem ser satisfeitas antes das necessidades de nível mais alto. Seria possível, inspirado na hierarquia, construir uma pirâmide de necessidades sociais, identificando setores e necessidades mais ou menos cruciais para o organismo social, numa analogia ao organismo biológico?
O exemplo abaixo é apenas ilustrativo e outros autores escolheriam talvez outros serviços ou hierarquias. Trata-se apenas de uma ferramenta para ajudar a pensar o que não pode faltar, pelo menos durante um prazo relativamente prolongado, para evitar o caos social.
Esboço de “Pirâmide de Necessidades Sociais”
A paralisação de algumas categorias profissionais – caminhoneiros, petroleiros, policiais – traz riscos muito maiores do que outras. Uma greve de professores pode durar meses e uma de sociólogos poderia durar anos sem grandes impactos para a sociedade. E qual seria o impacto para o país da paralisação da Usina de Itaipu? Ou dos portuários? Dos controladores de voo?
Já vimos metade do país ficar às escuras pela avaria de algumas torres de distribuição de energia elétrica. Uma epidemia nos rebanhos ou doenças na soja podem afetar fortemente as exportações. Somos, portanto, tanto mais expostos a riscos quanto mais certos setores e recursos estão concentrados e quanto mais próximos da base da pirâmide. É possível construir, por exemplo, uma matriz tripla que avalie concentração, grau de necessidade social e probabilidade de ocorrência de eventos potencialmente desestabilizadores.
Alguém já observou que o Plano Piloto, onde ficam os três poderes, concentra quase toda a estrutura governamental federal brasileira. Essa concentração é uma vantagem logística para o funcionamento cotidiano da administração pública. Mas, no caso de um ataque externo ou convulsão popular, o foco em alguns quilômetros quadrados poderia paralisar quase completamente o funcionamento do Executivo, Legislativo e Judiciário.
Em longo prazo, a diminuição de riscos para a economia e para a segurança passaria pela desconcentração e redução de dependências críticas, o que envolve planejamento, outro nome para pensamento estratégico. Se hoje 60% do transporte de carga é feito através das rodovias (CNT), é preciso investir em ferrovias, aerovias e hidrovias. Na eventualidade de uma modalidade ser afetada, outra dá continuidade ao fluxo. Se Itaipu é responsável por 20% do abastecimento de energia elétrica do país, que por sua vez compõe 67,5% da nossa matriz energética, um evento catastrófico prejudicaria boa parte do fornecimento de energia do país. Pela baixa qualidade do petróleo produzido no Brasil, precisamos importar ainda 20% do petróleo leve para as refinarias, o que nos torna dependentes dos preços internacionais. Tornar o país autossuficiente de petróleo leve e diversificar a matriz energética são formas de reduzir a exposição aos riscos de uma nova crise do petróleo, que jogou o mundo numa forte recessão nos anos 70.
Se transporte urbano é estratégico, precisamos diversificar a matriz investindo em ônibus, metrô, táxis, motoristas autônomos, bicicletas, veículos particulares e modais integrando esses diversos meios de transporte. Nestes dias de greve em São Paulo, vimos ruas vazias e ciclovias engarrafadas pela cidade, mostrando a importância dos transportes alternativos como opção de mobilidade. Se polícia é uma categoria profissional estratégica, em caso de greve é importante saber que existem as guardas municipais, a Força Nacional de Segurança Pública, os vigilantes privados, Forças Armadas com alguma expertise para atuar em situações de crise e substituir os grevistas. Em todas essas situações, a estratégia maximizadora é diversificar as apostas.
O problema é que a estratégia de diversificação tem custos: uma termoelétrica movida a carvão é mais cara que uma hidroelétrica. Transporte aeroviário é mais caro do que rodoviário. Uma política de diminuição da exposição ao risco precisaria levar em conta esse cálculo de custo-benefício. Alternativas menos eficientes podem ser benéficas em longo prazo se pensamos em redução da exposição aos riscos.
De todo modo, a lição do caminhonaço de 2018 e dos movimentos sociais de 2013, insuflados pelo aumento de tarifas de ônibus, é de que é importante para os setores de segurança pública conhecer e monitorar essas “concentrações relevantes” e “necessidades sociais básicas”. No final, sobra para a polícia, como sempre, conter manifestantes indignados e caminhoneiros insatisfeitos. Num cenário no qual se conjugam insatisfação generalizada, governos e instituições impopulares, crise econômica e uso generalizado das mídias sociais, é possível que essas situações sejam cada vez mais frequentes.