Os policiais e o risco jurídico
Faria bem o governador de São Paulo se retirasse o sigilo dos Procedimentos Operacionais Padrão (POP), possibilitando seu uso nos processos judiciais. Isso diminuiria o risco jurídico a que os policiais estão submetidos, além de facilitar o trabalho da Defensoria Pública
Arthur Trindade M. Costa
Professor de sociologia da Universidade de Brasília e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Na terça-feira, 19, o governador do estado de São Paulo, Rodrigo Garcia (PSDB), assinou decreto determinando que a Defensoria Pública do Estado ofereça assistência jurídica gratuita a policiais civis e militares acusados ou investigados por atos relacionados ao exercício profissional. O decreto prevê que a Defensoria atue na defesa de policiais acusados de crimes de lesão grave ou seguida de morte, lesão grave qualificada, fuga de presos, abuso de autoridade, tentativa de homicídio e homicídio. A Defensoria também poderá atuar gratuitamente nos casos de policiais em formação que se envolvam nesses cinco tipos de crime.
O tema é importante e tem grande impacto na segurança pública, pois, além dos perigos inerentes à profissão, os policiais estão submetidos a riscos jurídicos. São frequentes os processos contra policiais por algum tipo de desvio de conduta profissional. Na maior parte das vezes, acontece absolvição. No entanto, os policiais têm que arcar sozinhos com o pagamento de advogados e custas judiciais.
Até que ponto e sob quais circunstâncias é legitimo, ou admissível, o uso da força? Qual a linha demarcatória entre força legítima e violência policial?
Essas questões têm sido largamente debatidas por comandantes, diretores, gestores e pesquisadores de polícias. Em primeiro lugar, é importante destacar que essa linha demarcatória não é fixa. O limite entre força legítima e violência policial varia em função da forma como cada sociedade interpreta a noção de violência. Em segundo lugar, dada a complexidade do tema e suas graves consequências políticas, não há um consenso sobre qual seria este limite.
Do ponto de vista jurídico, há uma tendência de diferenciar força e violência com base na legalidade. São considerados atos de violência policial o uso da força sem a devida autorização legal. Os exemplos mais típicos de violência policial, de acordo com esse tipo de interpretação, seriam os atos de violência cometidos por policiais fora de serviço, ou a violência utilizada para ações proibidas pela lei, como extorsão e tortura.
Entretanto, ao enfatizar apenas os aspectos legais da questão, deixam-se de considerar as situações, onde embora legal, a força é utilizada de forma desnecessária ou excessiva. Afinal de contas, a lei pode indicar “quando” agir, mas pouco serve para orientar “como” agir.
Tais questões só podem ser respondidas a partir da própria experiência das polícias. Somente exercício continuado da atividade policial possibilita o acúmulo de saberes que permitem a análise das situações nas quais a força deve ser empregada, bem como qual a melhor forma de fazê-lo, de modo a melhor proteger os próprios policiais e os cidadãos.
Para isso, os saberes policiais devem ser transformados em códigos de deontologia e normas de conduta. Isso permite que as condutas individuais sejam avaliadas não só com relação a sua legalidade, mas também do ponto de vista profissional. Condutas que contrariem tais códigos e normas podem e devem ser punidas administrativamente, uma vez que podem ser avaliadas e supervisionadas a partir desses critérios.
Nas últimas décadas, vários países criaram códigos de deontologia e normas de conduta visando aumentar o controle sobre a atividade policial cotidiana. Em todos os casos, a adoção desses códigos e normas implicou transformações no treinamento e na supervisão da atividade policial.
A PMESP foi pioneira na elaboração de Procedimentos Operacionais Padrão para orientar a conduta dos policiais. Os POP, como ficaram conhecidos, foram incorporados ao treinamento e são largamente utilizados no cotidiano da atividade policial.
Entretanto, do ponto de vista jurídico, os POP são considerados documentos sigilosos. E, portanto, não podem ser utilizados em processos judiciais. Assim, quando juízes e promotores precisam decidir sobre a correção da conduta policial, só podem fazê-lo com base na lei. Dessa forma, os saberes policiais seguem sendo desconsiderados pelos tribunais.
Além de proporcionar assistência jurídica, faria bem o governador se retirasse o sigilo dos POP, possibilitando seu uso nos processos judiciais. Isso diminuiria bastante o risco jurídico a que os policiais estão submetidos, além de facilitar o trabalho da Defensoria Pública.