Os pecados capitais e a perícia: uma pequena reflexão de nossas imperfeições
A perícia está naturalmente associada a fatores positivos, mas o fator humano insere também nessa atividade as nossas vulnerabilidades. A perícia apresenta seus problemas, seus pontos a melhorar, suas debilidades
Cássio Thyone Almeida de Rosa
Graduado em Geologia pela UNB, com especialização em Geologia Econômica. Perito Criminal Aposentado (PCDF). Professor da Academia de Polícia Civil do Distrito Federal, da Academia Nacional de Polícia da Polícia Federal e do Centro de Formação de Praças da Polícia Militar do Distrito Federal. Ex-Presidente e atual membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Por se constituir em uma atividade essencial à justiça, pela importância e reconhecimento que ganhou nas últimas décadas, a perícia naturalmente goza de um status relacionado a fatores positivos. Mas, como em todas as áreas, o fator humano insere também nessa atividade as nossas vulnerabilidades. A perícia apresenta seus problemas, seus pontos a melhorar, suas debilidades.
Para falar sobre o tema, escolhi uma analogia com os chamados pecados capitais, que podem ser considerados como condições humanas negativas, ou vícios. Nem todos os chamados “pecados capitais” encontram uma correspondência com a atividade pericial, mas certamente alguns podem ser identificados entre nós peritos, quando não de uma forma direta, ao menos de uma forma indireta.
A lista tradicional dos pecados capitais inclui a soberba, a inveja, a preguiça, a gula, a avareza, a ira e a luxúria. Vamos então relacioná-los à nossa atividade:
A soberba está associada ao orgulho, à arrogância, à presunção e até à futilidade. Quando aprendemos a ser peritos, nossos mestres enfatizam que, para o exercício dessa atividade, é preciso antes de tudo muita humildade. E é exatamente esse o antídoto capaz de neutralizar a vaidade excessiva, aquela capaz de corroer a razão, aquela capaz de criar a presunção que acompanha o todo poderoso, aquele que tem sempre razão, independentemente das evidências.
Quantas vezes presenciei entre os meus pares a presença da soberba. Sim, ela está presente em nosso ambiente, assim como em todos aqueles onde existam seres humanos. Talvez, comparativamente a outras atividades, em especial aquelas relacionadas à segurança pública e à justiça, a soberba na perícia não possa ser comparada à que se observa em outras carreiras.
De maneira prática, é preciso combater em cada um de nós a soberba. Reconhecer quando nossos cálculos, nossas avaliações, nossas conclusões periciais estão equivocadas. Isso não é algo fácil.
Outro tentáculo da soberba na atividade pericial é a confusão que às vezes notamos entre os nossos pares sobre seu real papel. Alguns confundem a essência do que é a perícia com a de um papel equivalente ao de um “paladino da justiça” que ali está para condenar, e não é esse o nosso papel. A busca da verdade deve ser sempre o farol da nossa função, já diziam nossos mestres. O viés institucional, vamos assim chamá-lo, por eventualmente pertencer a uma estrutura voltada à identificação de um suspeito e até a uma condenação, pode resultar na perda dessa capacidade de entendimento. É preciso nunca perder de vista que até mais nobre quanto permitir que se alcance a justiça com a produção de provas, é evitar que um inocente pague de forma indevida.
Sobre a inveja, outro pecado capital, podemos entendê-la como aquela insatisfação pelo sucesso do outro, pelo progresso alheio. Na atividade pericial, não seria diferente. O sucesso sempre pode incomodar. O progresso, as novas ideias e a evolução muitas vezes encontram obstáculos nem sempre justificados, escondidos por trás desse sentimento em especial. Mais uma vez nada exclusivo para a perícia. Como antídoto a essa nossa fraqueza está a generosidade, que aqui pode se manifestar pelo espaço aberto pelo perito antigo àqueles que chegam como a nova geração. A generosidade está em “entregar o bastão”, sem medo, com a confiança e certeza de que o trabalho foi bem repassado, bem ensinado. É como não temer que um filho ganhe o mundo após receber a orientação de um pai.
Outro dos pecados capitais que se pode identificar em nossa atividade é a preguiça. Não de forma generalizada, eu diria que de forma até pontual, mas sim, a preguiça também está presente. Como humanos, falíveis e individualmente diferentes, a conduta de um perito pode ser muito distinta da média de seus pares. A falta de vontade ou interesse em uma atividade que exige algum esforço, em especial intelectual, pode se manifestar também no dia a dia de uma instituição pericial. Mais uma fraqueza que não é exclusiva, ao contrário, ela nos iguala sob nossa condição antes de tudo humana.
A gula, não no sentido do desejo insaciável por comida e por bebida, mas numa chave de interpretação que a relaciona com o egoísmo, também está presente em nossa realidade pericial, em especial pela busca de poder, fato que eventualmente afeta nossas relações interpessoais dentro das unidades periciais.
Em relação aos outros pecados capitais: a avareza, a ira e a luxúria; embora não individualizemos como especialmente presentes no exercício dessa atividade, seguem dando as caras entre as imperfeições de todos nós. Na linguagem da sabedoria antiga do oriente, todos estes são nossos kuravas, ou seja, nossos defeitos internos, e é contra eles que todos os dias lutamos!