Múltiplas Vozes 06/03/2024

Os militares e a fragilidade no controle sobre o mercado de armas

Criminosos realmente se aproveitaram das facilidades no acesso às armas e da fragilidade do Exército para adquirir armas no mercado interno

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Roberto Uchôa

Policial federal e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A alteração na política de controle de armas de fogo durante o governo Bolsonaro resultou na entrada em circulação de mais de um milhão e meio de armas entre 2019 e 2022. Concomitantemente, não houve investimentos significativos na melhoria dos sistemas de controle e fiscalização do mercado. Enquanto o número de CACs crescia rapidamente, a estrutura do Exército permanecia estagnada e os recursos alocados para esse propósito diminuíam. Essa equação inevitavelmente enfraqueceu o controle sobre o mercado, como evidenciado por dois incidentes recentes.

No primeiro incidente, um incêndio na residência de um coronel reformado do Exército, em Campinas/SP, resultou na evacuação de todos os moradores do prédio devido às explosões ocorridas no local. O coronel possuía um arsenal armazenado em um pequeno quartinho próximo à cozinha. Durante o combate ao incêndio, os bombeiros precisaram usar um escudo balístico da polícia militar para se proteger das munições que detonavam devido ao calor intenso. Informações preliminares sugerem que o incêndio possa ter começado no local onde as armas e munições estavam guardadas.

Apesar da descoberta de mais de cem armas, bem como uma grande quantidade de pólvora, munições e até granadas no local, o Exército alegou que o coronel tinha autorização para possuir apenas oitenta armas de fogo e três mil munições. O problema reside no fato de que, embora os militares sejam responsáveis pelo registro e fiscalização dos locais onde as armas são guardadas, a última visita à residência do coronel ocorreu em 2018, há mais de cinco anos. Este não é um caso isolado. De acordo com dados de um estudo da Globonews, em 2022, apenas 3% dos arsenais foram fiscalizados pelos militares.

Portanto, para determinar se o local era adequado para armazenar uma grande quantidade de armas e munições, se atendia aos requisitos necessários, e até para estabelecer a quantidade real de armas presentes, será necessário aguardar a perícia da Polícia Civil. O Exército não pode oferecer respostas a essas questões, simplesmente porque não cumpriu seu papel de fiscalização. Felizmente, não houve vítimas fatais, embora dezenas de pessoas tenham sido tratadas por intoxicação.

O incêndio por si só já seria um forte indício da fragilidade do Exército em cumprir seu papel de fiscalização dos arsenais dos CACs. No entanto, na segunda-feira, 05 de março, a divulgação de um relatório elaborado pelo Tribunal de Contas da União revelou que o problema relacionado ao controle desse mercado pelos militares era muito maior e mais grave do que se pensava. Segundo dados do relatório, entre 2019 e 2022, o Exército permitiu que milhares de criminosos adquirissem armas de fogo ou renovassem seus registros. Além disso, indivíduos falecidos foram autorizados a adquirir munições.

Dados contidos no relatório demonstram que, durante o período mencionado, o Exército concedeu registro de armas a 5.235 indivíduos que estavam sob processos de execução penal, ou seja, estavam cumprindo penas impostas por processos criminais, o que deveria impedir legalmente a autorização para registro ou renovação de registro de armas de fogo. Além disso, 2.690 pessoas conseguiram registrar ou renovar os registros de suas armas mesmo estando foragidas, com mandados de prisão em aberto. O descontrole na venda de munições seguiu o mesmo padrão, com 16.669 munições vendidas a 94 pessoas que já faleceram.

Os números apresentados revelam que, além dos problemas na fiscalização dos arsenais dos CACs, os militares falharam até mesmo em realizar o básico, que seria evitar que criminosos se registrassem como CACs e obtivessem armas e munições no mercado legal. Apesar da narrativa de que criminosos não adquirem armas legalmente, o relatório do TCU e várias outras investigações policiais apontam exatamente o contrário. Criminosos realmente se aproveitaram das facilidades no acesso às armas e da fragilidade do Exército para adquirir armas no mercado interno, como fuzis, que anteriormente só conseguiam através do tráfico internacional ou desviando de arsenais públicos.

No próprio relatório do TCU, foram apresentadas sugestões para melhorias na fiscalização e controle do mercado de armas de fogo, todas relevantes e que devem ser implantadas, mas a medida mais importante foi tomada pelo governo federal, que é a retirada dos militares desse papel. Com a determinação da transferência dessas atribuições para a Polícia Federal, um processo em andamento com previsão de conclusão para o início de 2025, há expectativas de melhorias tanto na fiscalização quanto no controle do mercado. No entanto, é crucial que o governo invista na melhoria da estrutura e do pessoal dedicado a essa função, caso contrário, corre-se o risco de apenas transferir o problema de um lugar para outro.

 

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