Jacqueline Sinhoretto
Socióloga, professora da Universidade Federal de São Carlos, coordenadora do GEVAC (Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos) e bolsista de produtividade do CNPq
Com o auxílio do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, hoje sabemos mais sobre a configuração racial das violências do que há uma década. Contudo, para nossa tristeza, esse conhecimento e a possibilidade de mudança dessa realidade política não andam juntos na luta por uma sociedade antirracista e menos violenta.
O tema racial nas estatísticas de mortalidade teve melhora desde que o DATASUS introduziu o quesito cor/raça em sua coleta, em 1996. Em 2002, o indicador já possuía uma consistência de preenchimento que permitiu as primeiras análises sobre a racialização da morte em escala nacional. Em 2012, o Mapa da Violência: A Cor dos homicídios (Waiselfisz, 2012) ofereceu a dimensão da injustiça racial em uma década, indicando o declínio de mortes de pessoas brancas, ao passo que as mortes de pessoas negras haviam aumentado.
A repercussão do dado chocou a opinião pública acostumada a pensar na existência de uma democracia racial. Desde então, o Anuário tem sido aperfeiçoado ano a ano nos indicadores de cor/raça, fomentando a sua produção e melhoria nas fontes de dados da segurança. Juntamente com o Atlas da Violência, produzido pelo Ipea em parceria com o FBSP, o Anuário tem introduzido inovações de cálculo para representar as desigualdades raciais e, assim, documentar as evidências do racismo institucional na segurança pública.
O conceito de racismo institucional remete à desigualdade de tratamento das polícias aos grupos racializados. Ele é definido não pelas intenções originárias das políticas públicas ou pela opinião individual de dirigentes, gestores e operadores das políticas, mas pelos seus resultados, isto é, efeitos concretos que podem não materializar os princípios norteadores e as opiniões individuais. Assim, se negros morrem mais do que brancos, as políticas de segurança estão viesadas pelo racismo, mesmo que seus participantes possam se declarar antirracistas. O resultado na ponta está fracassando na proteção da vida de um grupo social específico.
Convido à leitura das tabelas e gráficos da 18ª edição do Anuário. Negros são as maiores vítimas dos homicídios em geral, em tendência de crescimento (Gráfico 6), e isto pode ou não ser da inteira responsabilidade das polícias. Mas negros também são as maiores vítimas das mortes cometidas por policiais (Gráfico 18), e isso é da alçada das polícias. São também os policiais negros as maiores vítimas de suicídios (Gráfico 10), o que é um assunto das instituições.
A proteção da vida e da integridade das mulheres negras é a que mais falha, pois nos feminicídios e estupros (Gráfico 52) as vítimas negras são maioria. De alguma forma, são também as mulheres negras as que mais demandam os serviços policiais, transformando sua demanda em registro. E quanto a preparação para agir leva em conta as características próprias do seu público? Até no crime patrimonial, os brancos são mais vítimas de furtos de celulares, enquanto os negros são mais vítimas de roubo – tipo penal definido pelo uso da violência (Gráfico 28).
Tendo há anos trabalhado com as concepções próprias dos policiais sobre o racismo, em diversas polícias e com gestores de políticas de segurança, percebi o peso da ideologia da democracia racial, que foi definida pelos sociólogos que a estudaram como uma ideologia que imagina o Brasil livre do racismo e pressupõe que todos merecem tratamento igual. É parte do raciocínio ideológico encontrar casos individuais que “furam a bolha”, isto é, a presença de uma ou outra pessoa negra em posições de poder. O raciocínio é ideológico quando recusa aceitar os dados empíricos que mostram a desigualdade e a injustiça racial, reafirmando um discurso institucional de que todos são tratados igualmente perante a lei.
O problema da recusa de pensar a respeito de como o racismo se manifesta na prática é que polícias e policiais continuam reafirmando suas boas intenções – que existem na maior parte das pessoas que trabalham no serviço público. Mas boas intenções não bastam. É preciso assegurar que os resultados da ação institucional realmente materializem os princípios publicamente enunciados. O caráter democrático da intenção se perde se os resultados na ponta produzem uma sociedade muito pouco democrática.
É por isso que o Anuário precisa continuar demonstrando, e enfatizando com os cálculos de ponderação sobre o tamanho dos grupos de cor/raça e a chance diferencial de serem vítimas de violência, que a ideologia de democracia racial está muito distante de uma prática concretamente democrática. O que ele vem demonstrando é que a injustiça racial não está arrefecendo com o passar do tempo nem com o aumento da qualidade das estatísticas.
A porcentagem de pessoas negras mortas pelas polícias cresce ano a ano; passou de 70% na década anterior para 82% em 2013. Estamos falando de uma especialização da morte violenta produzida pelas polícias sobre corpos negros. E esse resultado está custando cada vez mais caro em termos financeiros. Quanto maiores os orçamentos do setor de segurança e das polícias, mais cresce a porcentagem de negros entre as vítimas. Muitas pessoas reagirão com estranheza, pensando que não se pode traçar uma relação direta entre as coisas. Concordo, e procuro estudar quais são os mecanismos que produzem uma relação indireta entre o fato de que nunca houve tantos investimentos em segurança e a desigualdade racial do resultado nunca foi tão grande.
Pois é esse o resultado que a leitura conjunta dos dados do Anuário 2024 nos deixa ver. Ainda na maior parte dos estados a proporção de mortes decorrentes de intervenção policial no conjunto das mortes violentas intencionais cresce (Tabela 11). E em todos os estados houve acréscimo orçamentário significativo. Alguns converteram a melhoria da situação orçamentária em redução das mortes cometidas pela polícia, mas a maioria converteu mais recursos em mais mortes. Mais mortes de pessoas racializadas.
Os registros de injúria racial e racismo têm tendência de crescimento em quase todos os estados (Tabela 18), mas sabemos que há um gargalo na produção de investigação e no reconhecimento judicial dos delitos. Fato é que a sociedade procura as polícias quando se sente moralmente agredida por racismo, e quer respostas.
No caso da população prisional, o racismo institucional também está em ascensão, pois a porcentagem de pessoas negras presas passou de 58,4% em 2005 para 69,1% em 2023 (Tabela 92). Considerando que, quanto mais bem preenchidas as fontes da estatística, mais vemos a discriminação racial no encarceramento, é impossível não constatar o enviesamento racial que se inicia na suspeição dos que serão abordados pela polícia. Isso se confirma na fase da investigação, é reiterado pela justiça criminal e termina na composição da população encarcerada. É preciso determinação para parar essa máquina de injustiça racial.
O Anuário mostra os vieses racistas nos diferentes indicadores da segurança pública, e há necessidade de continuar avançando na coleta e tratamento desses dados. Conhecemos o racismo em cores bem mais nítidas. Cabe agora às instituições policiais e aos governos que contribuem com cada vez mais recursos enxergar o problema. Ao enxergá-lo, precisam reafirmar a intenção de corrigi-lo mediante políticas para reduzir a desigualdade de tratamento. Juntamente com a intenção, é preciso cobrar resultados de isonomia entre pessoas negras e brancas nas políticas de segurança. Isentar-se da culpa pelo racismo nunca bastou.
Referência
Waiselfisz, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012: A Cor dos Homicídios no Brasil. Rio de Janeiro: CEBELA, FLACSO; Brasília: SEPPIR/PR, 2012.