Múltiplas Vozes 31/05/2023

Os desaparecidos no Brasil: perfil e lacunas de investigação

Se o desaparecimento não compuser o grupo prioritário, não acometer pessoas com influência social ou política e não houver indícios de outros crimes correlatos, dificilmente a investigação será iniciada

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Talita Nascimento

Graduada em Gestão de Políticas Públicas pela USP e pós-graduada em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade CERS/Introcrim. Pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou, no último dia 22, a primeira edição do Mapa dos Desaparecidos no Brasil. A pesquisa analisou mais de 300 mil registros policiais e constatou uma média de 183 desaparecimentos por dia no período 2019-2021.

No triênio, mais de 200 mil pessoas desapareceram. Dessas, a maior parte é homem, jovem e negra: 62,8% dos desaparecidos são homens, 29,3% são adolescentes de 12 a 17 anos e 54,1% são pretos e pardos. O que nos chama a atenção é o fato de a taxa de adolescentes desaparecidos ser 2,8 vezes maior do que a nacional e, mesmo assim, não ser o grupo prioritário de investigação quando o registro é feito. Pelo contrário, são compreendidos enquanto “problema de família”: as causas dos desaparecimentos e a responsabilidade de solução são deslocadas para o interior das unidades domésticas, vistas como “instâncias produtoras de desaparecidos” em função da violência doméstica, ou fruto da “rebeldia” dos adolescentes.

Como o fenômeno não constitui crime, não necessariamente dará início a um inquérito policial, mesmo nos casos de desaparecimento forçado. A despeito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário desde 1992, classificar o desaparecimento forçado enquanto crime contra a humanidade e ressaltar a obrigação de seus integrantes em tipificar o delito em sua legislação, isso permanece enquanto lacuna.

Além dessa brecha, outra questão sobre o desaparecimento permanece de fora do texto legal: suas espécies não são definidas. Embora a Lei 13.812/19, que institui a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, classifique a pessoa desaparecida enquanto “todo ser humano cujo paradeiro é desconhecido, não importando a causa de seu desaparecimento, até que sua recuperação e identificação tenham sido confirmadas por vias físicas ou científicas”, ela não define as causas do desaparecimento.

Assim, a pesquisa do FBSP trabalha com as espécies definidas pela promotora Eliana Vendramini, responsável pelo estabelecimento do Programa de Localização e Identificação de Pessoas Desaparecidas (PLID) em São Paulo. O desaparecimento voluntário, quando a pessoa, maior e capaz, decide romper o vínculo com seus amigos e familiares por livre e espontânea vontade; o desaparecimento involuntário, quando a pessoa se afasta, ou é afastada de seu convívio, ou por ser incapaz, ou por questões externas, como desastres naturais e acidentes; e o desaparecimento forçado, em que a pessoa, capaz ou não, é afastada forçadamente, seja por violência, fraude ou grave ameaça.

Se o desaparecimento não compuser o grupo prioritário (crianças, idosos e pessoas com questões de saúde mental), não acometer pessoas com influência social ou política, e não houver indícios de outros crimes correlatos, como homicídio, dificilmente a investigação será iniciada. Fica sob a responsabilidade da família e dos amigos a procura pelo desaparecido nos hospitais e IML, o contato com a assistência social e a divulgação da ocorrência nas redes sociais.

Destaca-se, neste sentido, que a pauta do desaparecimento não é nova na América Latina. Países como Guatemala, Peru, Argentina, Chile e Uruguai, cujo desaparecimento forçado era prática que compunha a doutrina de segurança nacional durante os períodos de ditadura, ainda sofrem com a falta de resposta sobre o paradeiro de seus entes: no cemitério de Perus, por exemplo, localizado na zona norte da cidade de São Paulo, há dezenas de pessoas enterradas anonimamente, algumas talvez vítimas do regime militar, que até hoje permanecem sem identificação.

Em decorrência da falta de uma política nacional de busca de desaparecidos, o Ministério Público do Rio de Janeiro desenvolveu, em 2006, junto à Polícia Civil, o Programa de Identificação de Vítimas. Em 2011, quando o Ministério Público de São Paulo se vincula à iniciativa, ela se transforma no Programa de Localização e Identificação de Pessoas Desaparecidas (PLID) que, mais tarde, em 2018, quando o Conselho Nacional dos Ministérios Públicos firma a parceria ao PLID, surge o Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos (SINALID), coordenado pelos Ministérios Públicos Estaduais.

Atualmente, 21 estados adotam o PLID enquanto prática de enfrentamento ao desaparecimento e é o único banco de dados disponível. Embora a Lei 13.812/19 tenha enquanto diretriz a criação do Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas, cujo objetivo é integrar os registros em nível nacional, com detalhes do desaparecido para além do simples registro, como foto e características físicas, a promessa ainda não se cumpriu.

Apesar de a Lei 13.812/19 representar um avanço para a legislação brasileira, sua implementação se mostra deficitária e precisa ser priorizada pelos governos estaduais e Federal: se faz necessário adotar as espécies de desaparecimento (voluntário, involuntário e forçado); aprimorar o compartilhamento de informações dos diferentes órgãos; orientação, pelo Governo Federal, sobre os protocolos de registro e conclusão dos casos às polícias estaduais; e, por fim, deve-se oferecer um protocolo de assistência jurídica, pelo Estado brasileiro, que garanta o funcionamento dos equipamentos de assistência interdisciplinar às famílias dos desaparecidos e aos eventuais localizados.

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