Multiplas Vozes 14/12/2022

Os desafios e oportunidades do Governo Lula no campo das armas de fogo

A área da Polícia Federal dedicada ao combate ao tráfico de armas conta com apenas um delegado e com nenhum agente. É preciso elevar essa área para status de divisão ou coordenação e equipá-la à altura do desafio de um país que apreende 120 mil armas por ano

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Bruno Langeani

Gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, mestre em Políticas Públicas pela Universidade de York (Reino Unido), membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e autor do livro "Arma de fogo no Brasil: gatilho da violência" (Editora Telha)

Em seu primeiro mandato, Lula teve o mérito de ajudar a aprovar e sancionar uma das leis mais completas para controle de armas (o Estatuto do Desarmamento). Também em seu governo foram feitas as fases mais bem sucedidas de campanhas de entregas voluntárias, com mais de 472 mil armas recolhidas e destruídas só entre 2004 e 2005. Não é pouco, mas ainda assim foi insuficiente.

Doze anos depois de deixar o governo federal, o presidente Lula retorna com um cenário mais desafiador, sucedendo um governante que desmontou mecanismos de controle, criou um caos jurídico, facilitou e estimulou a compra de armas mais potentes e em maiores quantidades. Tudo isso foi feito simultaneamente à redução dos recursos de fiscalização e revogação de mecanismos de marcação e rastreamento de armas e munições. Não surpreende, portanto, que seja no governo Bolsonaro que a Polícia Federal esteja encerrando seu pior ciclo de apreensão e investigações sobre tráfico de armas. E que o Exército esteja frequentando semanalmente as páginas policiais, com CACs presos fornecendo armas ao crime organizado, ou envolvidos em atos golpistas, como o do ex-deputado Roberto Jefferson que, além de atentar contra a democracia, emboscou e tentou matar quatro policiais federais no mês das eleições.

A gestão que se inicia enfrentará problemas históricos e outros herdados da gestão Bolsonaro. O primeiro deles diz respeito à informação. Os bancos de dados da PF (SINARM) e do Exército (SIGMA) possuem falhas graves, como a incapacidade de extrair relatórios de armas por tipo e calibre, ou fazer extrações por unidade da federação. Para piorar, estão cada vez mais desatualizados. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelou que há atualmente 1,5 milhão de armas com registros vencidos (só na PF). Assim, na prática não se sabe se essas armas ainda estão com seus proprietários originais, se seguem no local de guarda informado, e pior, se seus proprietários seguem em condições práticas e legais para usá-las. O objetivo da renovação de registro é, justamente, atualizar a informação sobre o paradeiro da arma e a condição do proprietário. É quando se checa se a idoneidade (ficha limpa) segue inalterada, as atuais condições motoras, psicológicas, etc. Sempre existiram proprietários que abandonam o cumprimento dessa regra. O governo Dilma deu o primeiro passo em falso. Ao invés de demandar à PF e ao Exército a busca ativa desses proprietários, preferiu mudar o prazo de renovação de 3 para 5 anos, o que só ocultou temporariamente o problema. Bolsonaro dobrou a aposta e passou para 10 anos. Será preciso grande esforço para auditar esses bancos, convocando proprietários para atualizar informações, empreitada que hoje pode ser realizada mais facilmente com aplicativos e recursos digitais.

O outro problema será reconstruir de forma racional, e com a extirpação dos excessos, o regulamento legal. Algo que esteja de acordo com o espírito da lei, que prevê a lógica de controle para compras e excepcionalidade para o porte de arma. A maior parte dessas correções está amparada por decisões recentes do Supremo Tribunal Federal, que apontaram inconstitucionalidades na forma e conteúdo dos decretos e portarias editadas pelo atual presidente. Na prática, será preciso revogar dezenas de normativas e concentrar o regulamento principal em dois eixos, como vigorou de forma contínua desde 2004: um decreto regulamentador da lei editado no âmbito da Justiça e Segurança Pública e outro de fiscalização de produtos controlados, editado pela Defesa e Comando do Exército.

Ao reduzir o calibre de armas liberadas para civis, como anunciado pelo futuro ministro Flávio Dino, e proibir o uso civil de certos tipos de armas, como carabinas e fuzis semiautomáticos, será necessário cancelar registros e convocar proprietários para regularizarem sua situação. Uma possibilidade, já realizada em outros países, como a Nova Zelândia (que proibiu fuzis após um massacre feito contra mesquitas em 2019), é oferecer um valor para compra dessas armas, mais próximo de seu valor de mercado, estimulando sua entrega. No Brasil, essa ação pode servir ainda para reequipar forças policiais, que usam vários dos modelos liberados para civis e CACs, como carabinas .40 e 9mm e fuzis calibres 5,56mm.

Há também um desafio há anos apontado por entidades da sociedade civil, como os Institutos Sou da Paz, Igarapé e Fórum Brasileiro de Segurança Pública,  que se relaciona a competências e governança. Há assuntos de interesse civil, como tiro esportivo, caça e coleção, que nunca deveriam ter sido designados ao Exército, o que gera fragmentação na política, como apontou recentemente o Tribunal de Contas da União. Para piorar, questões de governança, como a relação entre MJSP e Secretarias Estaduais de Segurança, que poderiam ter avançado com a lei do Sistema Único de Segurança, foram totalmente negligenciadas pelo atual governo. Praticamente a totalidade das ocorrências com armas (furtos, roubos, perdas), são registradas em delegacias estaduais, assim como mais de 96% das apreensões. Porém, o MJSP nunca deliberou sobre os formatos do repasse desses dados para o SINESP. Na prática, isso faz com que o Brasil não saiba quantas armas apreende por ano, e inviabiliza que a Polícia Federal enxergue o cenário completo do perfil das armas do crime e apoie os estados em rastreamentos internacionais, ainda que tenha convênios para acessar diretamente sistemas da Interpol e da americana ATF.

Ao resolver esses pontos, o governo Lula já conseguirá atuar para prevenir o mau uso de armas por proprietários legais e também estancar a sangria de armas para o mercado do crime. Mas é preciso avançar mais. Atualmente, a área da Polícia Federal dedicada ao combate ao tráfico de armas conta com apenas um delegado e com nenhum agente. É preciso elevar essa área para status de divisão ou coordenação e equipá-la à altura do desafio de um país que apreende 120 mil armas por ano (a Colômbia, no auge dos conflitos, apreendia 50 mil), e que tem na arma de fogo o anabolizante que potencializa as facções criminosas. Esperamos que a prioridade para a área se transfira dos discursos para os orçamentos e estruturação que esse campo demanda.

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