Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022

Os dados recentes sobre suicídios de policiais

Mensagens messiânicas que invocam o papel dos policiais na luta contra o “mal” lançam-nos em ações arriscadas, em que o saldo de vidas perdidas, de qualquer lado do cano de um fuzil, é resultado aceitável. Não deve ser!

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Alan Fernandes*

Coronel da Reserva da PM/SP, Doutor em Administração Pública e Governo pela EAESP/FGV

Os colegas do A.C.S. me procuraram. “É bom o senhor dá uma olhada. Ele não está bem e faz tempo”.

Na última vez em que faltou ao serviço, seus companheiros de serviço foram à casa onde A.C.S. morava. Empoeirada, apresentava as marcas do fim do relacionamento.

A.C.S. era um rapaz de seus vinte e cinco anos. Na nossa conversa, revelou que deixou a casa da mãe, mais distante do serviço, alugou um fundo de quintal e passou a morar com sua paixão, havia muitos anos. Suas faltas e atrasos eram em razão dos remédios que estava tomando, que o faziam perder o horário.

Disse a ele que as pessoas estavam preocupadas. “É, de fato, da última vez que eles foram, falei em me matar.”

“Posso te encaminhar ao psicólogo? São pessoas que têm todo o jeito para essas coisas, te asseguro. Posso também te conceder uma licença-prêmio, antecipar suas férias… Ou ambas as coisas, o que me diz?”

“Se o senhor fizer isso, vai ser pior. Eu amo estar aqui. Amo isso aqui. Se o senhor me tirar, me afastar, tudo só vai piorar. Deixa eu quieto. Tudo vai melhorar”.

Após um ano, A.C.S. se matou com sua arma.

 

A última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública aponta uma queda de 4% nas mortes de policiais em 2021. Embora pouco expressiva, há que se comemorar a variação negativa anual, ainda mais por representar uma alteração do último ano desse indicador, que mostrou alta de 19,6% na comparação entre 2020 e 2021.

Se, quanto às mortes por causas externas, os dados de 2021 apresentam um cenário nacional favorável, o mesmo não se pode dizer quanto aos suicídios, que apresentaram um aumento de 55,4%, com 121 vítimas. Esses dados referem-se somente aos policiais da ativa. É preciso dizer que esse aumento no comparativo com 2020 se deve em grande medida à entrada de dados de novos estados no cômputo nacional, dentre eles São Paulo, que tem maior representatividade estatística, com 23,7% dos casos nacionais, e que não apresentara dados para 2020. Ocorre que, mesmo desagregando os dados desse estado, o Brasil apresentou um aumento de 18,5% das taxas de suicídios de policiais da ativa. Louve-se que, de 2018 para cá, 11 novos estados passaram a apresentar os números de suicídio de suas forças policiais; na atual edição, apenas Ceará e Rio Grande do Norte deixaram de informar tais dados. Não há dados para outras corporações brasileiras (federais ou municipais).

Os dados trazidos pela edição 2022 do Anuário trazem destaque para um aumento expressivo dos casos no Maranhão, com um aumento de 200%; Rio Grande do Sul, com um aumento de 133%, além dos dados já trazidos sobre Rio de Janeiro e Bahia. Malgrado os avanços percentuais do Distrito Federal e Pernambuco em 2021 serem inferiores em relação a outros estados, é importante dizer que, olhando uma série histórica dos últimos três anos, tais unidades da Federação se destacam no cenário nacional. Com base nas edições anteriores deste Anuário, o Distrito Federal acumula, desde 2019, alta de 83,33% (nove policiais mortos) e Pernambuco uma elevação de 133,33% (14 policiais mortos).

Apresentam queda de suicídios no comparativo 2020-2021 os estados da Paraíba (dois casos ante nenhum em 2021) e Paraná (11 casos ante seis em 2021), com uma queda de 45,5%. Com menores números absolutos, mas também com um cenário de queda, são encontrados os estados de Alagoas, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Rondônia, Roraima e Tocantins.

Diante desse panorama nacional de alta, procuramos algumas de suas causas. Em termos mais conjunturais, procuramos compreender os impactos da pandemia, cuja relação com o universo policial já foi tema de análise pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Apesar das mudanças ocorridas no universo policial, que introduziria novos patamares de estresse aos policiais, sendo esse um dos vetores do suicídio, e o elevado números de colegas mortos em decorrência da Covid-19, os estudos sobre a relação entre suicídios e a pandemia apontam para uma baixa correlação.

O panorama errático dos números mais recentes apresentados não permite uma análise mais conclusiva, pois, nos últimos três anos as taxas nacionais de suicídio dentre policiais variaram de -15,6% a + 43,2%. Atribui-se muito disso à crescente acuidade das instituições policiais em relação a isso, cuja atenção permitirá um acúmulo metodológico na coleta dos dados. Ganham importância assim os trabalhos que se dão nas terapias, de cunho mais individual e menos epidemiológico.

Todavia, um espectro mais sociológico pode nos auxiliar na compreensão do universo policial. Acreditamos que conecta, inclusive, os fenômenos do suicídio e das mortes por causa externa. Durkheim, em “O Suicídio”, recorre ao exemplo dos militares para categorizar o suicídio altruísta, no qual o suicida comete o ato por acreditar que não consegue dar conta dos papeis sociais que lhe são exigidos pela sociedade. No seu ato extremo, interromperia a pressão social que sofre, elevando-se à concepção de uma morte como reforço dos padrões sociais. Podemos dizer que, em sua concepção, deixa de ser uma vergonha para o conjunto social, para ser um(a) mártir.

A.C.S, policial do triste relato que trouxemos no início do texto, matou-se também por isso. Mas, conhecendo-o, tanto faria que a morte lhe ocorresse por suas mãos ou em uma ocorrência policial: ela consumaria o mito do herói.

Com isso, pretendemos dizer que arbítrio policial e vitimização por causas externas ou autoimpostas têm um fundo comum: uma pressão interna às corporações, mas também externa a elas, que lhes dizem ser “a última trincheira do bem”, o “esteio moral da sociedade”, “o cumprimento do dever com o sacrifício da própria vida”. Mensagens messiânicas que invocam o papel dos policiais na luta contra o “mal” lançam-nos em ações arriscadas, em que o saldo de vidas perdidas, de qualquer lado do cano de um fuzil, é resultado aceitável. Não deve ser!

 

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